terça-feira, 30 de junho de 2015

Presente enfeitado


   Aos dezoito anos decidiu sair do interior e ir estudar na capital. O ano era 1968. Alguns dizem que esse ano não acabou e talvez seja verdade para ela...
     Ganhava sanduíches nos bares onde tocava seu violão enquanto estudava filosofia na universidade e astrologia nas horas vagas. Além dos sanduíches, o dinheiro era curto e houve uma semana em que a base da alimentação foi abacaxi. Estava em promoção na feira.
  Nessa época fez muitos amigos que se autodenominavam hippies. Pessoas com cabelos despenteados e roupas coloridas que queriam inventar uma nova sociedade, uma nova maneira de viver. Ela não compreendia muito bem aquele movimento, começou nos Estados Unidos contra uma guerra e virou muitas outras coisas. Mas ela sabia que era contra todas as guerras, e que era contra a ditadura e por isso passou a usar seus lindos cabelos longos descabelados e as longas saias coloridas também. Foi a maneira que ela encontrou de ir contra aquilo de  que discordava sem ser presa e torturada.
     Ela só não gostava muito das substâncias variadas que os amigos usavam para atingir uma suposta abertura de consciência. Costumava se sentir desorientada, sua consciência parecia não se abrir em nada e ela acabou por desistir delas.
     Adotou a alimentação vegetariana. Sonhou um dia viver numa comunidade de pessoas que trabalhariam pelo bem comum. Sonhou muitos sonhos de um mundo melhor, ela e aquele 'beatle'.
     Um dia ela resolveu ir ver o mar pela primeira vez. Junto com outros amigos foi de carona até o litoral. Quatro dias para percorrer os quatrocentos  quilômetros até o oceano.
     Quando ela viu o mar pela primeira vez foi uma emoção límpida, serena. Naquele momento ela se sentiu parte de algo maior. Nunca tinha visto tanto azul.
     Sentiu pela primeira vez o cheiro de maresia. Ouviu pela primeira vez o som das ondas.
     Pegou seu violão, sentou-se na areia e tocou. E cantou. E chorou.

     No fim do dia descobriram um galpão abandonado onde poderiam passar a noite. Outras pessoas na mesma situação já estavam se acomodando por lá. Ouvia-se conversas aqui e ali, outros violões. Cheiros de fumaças.
     Quando todos já estavam dormindo, ela escutou estranhos ruídos próximos à parede. Ligou sua lanterna, e do ângulo que estava deitada no chão viu três baratas enormes a alguns centímetros de distância.
     Levantou-se imediatamente e saiu dali sentindo o ar da noite que começava a esfriar. Perambulou pela cidade até encontrar uma igreja. Acomodou-se nas escadas e adormeceu por alguns minutos quando foi acordada por um rapaz que tocava gentilmente seu ombro.
      - Olá! Está tudo bem com você?
      Ela teve um sobressalto. Abriu os olhos e viu um rosto que usava óculos de grossos aros pretos.
      - Me desculpa, eu não quis te assustar.
      - Tudo bem. Você quer alguma coisa?
      - Você pretende passar a noite aqui?
      - Sim, algum problema?
      - Vai esfriar. Você não gostaria de dormir na minha barraca?
     - Mas que absurdo, você nem me conhece e já vem me fazendo uma proposta como essa?
     - Não, não! Você não entendeu. Eu te empresto a barraca e fico de fora.
     Silêncio.
      - Você pode repetir?
      Ele repetiu.
      Ela aceitou, relutante.
     Ela dormiu dentro da barraca e ele no chão na porta, como que velando seu sono.
     Eles passaram os dias que se seguiram juntos. Em que momento ela o convidou para entrar é uma dúvida que permanece. Mas o fato é que eles voltaram no fusca dele de Garopaba para Porto Alegre. Fusca esse em que eu aprendi a dirigir vinte anos depois quando completei dezoito anos. A primeira das três que ele ensinou a dirigir.

      Os muitos sonhos foram ficando pelo caminho. As comunidades não deram certo. As guerras não acabaram. As consciências não se abriram. Mas o amor deles durou, imperfeito, único, necessário como a vida.

    E essa história, já modificada pelas fantasias e desejos de quem contou e de quem ouviu, permanece enfeitando o presente, pelo menos de quem quiser ter um presente enfeitado.

domingo, 14 de junho de 2015

Dia dos namorados


        Há mais de vinte anos mandei meu amor embora, impedida de conter a ansiedade de viver algo que nem eu sabia do que se tratava. Mandei meu amor embora.
       Vinte anos depois me deparo com ele vagando, meio à deriva. Eu também estava sem rumo e tive a sorte de ele me mostrar uma direção e querer ir comigo. 
      Hoje juntos, somos leme e motor, e se o vento soprar forte, nosso amor é a vela, branca, imensa e forte.