Aos dezoito anos decidiu sair do interior e ir estudar na
capital. O ano era 1968. Alguns dizem que esse ano não acabou e talvez seja
verdade para ela...
Ganhava
sanduíches nos bares onde tocava seu violão enquanto estudava filosofia na
universidade e astrologia nas horas vagas. Além dos sanduíches, o dinheiro era
curto e houve uma semana em que a base da alimentação foi abacaxi. Estava em
promoção na feira.
Nessa época fez
muitos amigos que se autodenominavam hippies. Pessoas com cabelos despenteados
e roupas coloridas que queriam inventar uma nova sociedade, uma nova maneira de
viver. Ela não compreendia muito bem aquele movimento, começou nos Estados
Unidos contra uma guerra e virou muitas outras coisas. Mas ela sabia que era
contra todas as guerras, e que era contra a ditadura e por isso passou a usar seus lindos cabelos longos descabelados e
as longas saias coloridas também. Foi a maneira que ela encontrou de ir contra aquilo de que discordava sem ser presa e torturada.
Ela só não
gostava muito das substâncias variadas que os amigos usavam para atingir uma
suposta abertura de consciência. Costumava se sentir desorientada, sua
consciência parecia não se abrir em nada e ela acabou por desistir delas.
Adotou a alimentação vegetariana. Sonhou um dia viver numa comunidade de pessoas que trabalhariam pelo bem comum. Sonhou muitos sonhos de um mundo melhor, ela e aquele 'beatle'.
Adotou a alimentação vegetariana. Sonhou um dia viver numa comunidade de pessoas que trabalhariam pelo bem comum. Sonhou muitos sonhos de um mundo melhor, ela e aquele 'beatle'.
Um dia ela
resolveu ir ver o mar pela primeira vez. Junto com outros amigos foi de
carona até o litoral. Quatro dias para percorrer os quatrocentos quilômetros até
o oceano.
Quando ela viu o
mar pela primeira vez foi uma emoção límpida, serena. Naquele momento ela se
sentiu parte de algo maior. Nunca tinha visto tanto azul.
Sentiu pela
primeira vez o cheiro de maresia. Ouviu pela primeira vez o som das ondas.
Pegou seu violão,
sentou-se na areia e tocou. E cantou. E chorou.
No fim do dia
descobriram um galpão abandonado onde poderiam passar a noite. Outras pessoas
na mesma situação já estavam se acomodando por lá. Ouvia-se conversas aqui e
ali, outros violões. Cheiros de fumaças.
Quando todos já
estavam dormindo, ela escutou estranhos ruídos próximos à parede. Ligou sua
lanterna, e do ângulo que estava deitada no chão viu três baratas enormes a
alguns centímetros de distância.
Levantou-se
imediatamente e saiu dali sentindo o ar da noite que começava a esfriar.
Perambulou pela cidade até encontrar uma igreja. Acomodou-se nas escadas e
adormeceu por alguns minutos quando foi acordada por um rapaz que tocava
gentilmente seu ombro.
- Olá! Está tudo
bem com você?
Ela teve um
sobressalto. Abriu os olhos e viu um rosto que usava óculos de grossos aros
pretos.
- Me desculpa,
eu não quis te assustar.
- Tudo bem. Você
quer alguma coisa?
- Você pretende
passar a noite aqui?
- Sim, algum
problema?
- Vai esfriar.
Você não gostaria de dormir na minha barraca?
- Mas que
absurdo, você nem me conhece e já vem me fazendo uma proposta como essa?
- Não, não! Você
não entendeu. Eu te empresto a barraca e fico de fora.
Silêncio.
- Você pode
repetir?
Ele repetiu.
Ela aceitou,
relutante.
Ela dormiu dentro
da barraca e ele no chão na porta, como que velando seu sono.
Eles passaram os dias que se seguiram
juntos. Em que momento ela o convidou para entrar é uma dúvida que permanece.
Mas o fato é que eles voltaram no fusca dele de Garopaba para Porto Alegre.
Fusca esse em que eu aprendi a dirigir vinte anos depois quando completei dezoito anos. A primeira das três que ele ensinou a dirigir.
Os muitos sonhos
foram ficando pelo caminho. As comunidades não deram certo. As guerras não
acabaram. As consciências não se abriram. Mas o amor deles durou, imperfeito,
único, necessário como a vida.
E essa história,
já modificada pelas fantasias e desejos de quem contou e de quem ouviu,
permanece enfeitando o presente, pelo menos de quem quiser ter um presente enfeitado.