quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Alternativa

Nenhuma alternativa em mim, 
nem o reflexo, 
nem a reflexão, 
preciso da arte, da beleza. 
E talvez, abandonada da aflição, descansar minha cabeça pesada, 
no colo do artista que ali posicionou os espelhos, janelas indiscretas, a refletir os observadores desavisados, e suas intranquilas existências...
Lá estou eu, tentando captar o instante.
Um segundo interessante. 
Algum dia será o bastante?






domingo, 30 de agosto de 2015

Instantâneo

   De dentro do café em Paris, peço uma taça de vinho. Escondida capto um momento privado. A mulher e seu segredo, eu e o meu...

TPM ou sinceridade?


   O politicamente correto anda me irritando deveras. Coisa mais chata.
   Vamos organizar: o que é correto é correto e fim. Necessário, virtuoso, civilizador.
   Já o politicamente correto é um saco. É o bom mocismo de botequim.
   O mau humor virou politicamente incorreto. Você tem que ser magra, competente, politicamente engajada, saudável, generosa e simpática! Faça-me o favor! Simpática é demais.
   A alegria virou uma obrigação.
   Descontar nos outros não resolve, eu sei, mas dá um certo alívio momentâneo e eu gostaria de ter o direito de sentir de forma mais espontânea os descaminhos da alma, sem culpa.
   Outro dia xinguei o cara que corria no meio da ciclovia, xinguei, fazer o que? É a vida! Ele estava errado. Será que vai resolver? Será que ele deixará de correr no meio da ciclovia? Provavelmente não. E daí? Xinguei porque quis, e xingaria de novo. Não sou perfeita, não quero ser. Não gosto nem de lipoaspiração, quanto mais do politicamente corretíssimo.
   Alguns dias fico, de verdade, de saco cheio.
   E para o seu governo, o cara que corria no meio da ciclovia era negro. E xinguei-o. Com minha melhor voz esganiçada de quando fico furiosa, xinguei-o de mau educado. Não me ocorreu nenhum xingamento racista, porque falta de educação não tem absolutamente nada a ver com a cor da pele. Aliás, a maioria da pessoas que correm na ciclovia são bem branquinhas. Apenas calhou de eu estar atacada nesse dia, e o dito rapaz, quando ouviu o 'plimplim' da buzina da minha bicicleta, disse em tom superior 'calma!'. Não suportei. Calma? Mas eu estaria calma, se pedalasse para o meu trabalho em uma ciclovia livre de corredores.
   E porque hoje, estou navegando pelos mares da rabujice, me ocorre que o Homo sapiens está deveras equivocado, os de todas as cores. E eu faço parte dessa espécie e ninguém me perguntou se eu não queria ser ET.
   Sou diariamente obrigada a ser humana e fazer parte desse mimimi coletivo e hipócrita. Ó!


domingo, 23 de agosto de 2015

Viver exige joelhos fortes


    Tania me procurou indicada  por uma amiga fisioterapeuta. Tinha operado o joelho fazia pouco mais de dois meses e havia recebido indicação médica de, após receber alta da fisioterapia, começar atividade física imediatamente. Tania nunca gostara de exercícios físicos, era uma intelectual convicta. Mas seu corpo mandou-lhe um sinal inequívoco: num movimento corriqueiro rompera-lhe um ligamento. A dor foi terrível. 
     Ela chegou no meu estúdio mancando de leve, meio encurvada para frente, carregando um peso invisível nos ombros. Não tinha força muscular. Notava-se uma frouxidão ligamentar que dava uma falsa impressão de ter articulações flexíveis, quando na verdade ela não tinha estabilidade nenhuma. Ao olhar para ela tinha-se a impressão de uma pessoa afundada.
     Como geralmente acontece nas aulas individuais Tania me falava de sua vida. Uma mulher na casa dos 40, traços harmoniosos, inteligente, mas solitária. Nunca tivera um  relacionamento por mais de um ano, sua auto estima era um tanto danificada. Ela parecia ter certeza de não ser desejável. Não compreendia e não gostava do seu corpo.
    Muitas vezes ela se irritava com exercícios mais  desafiadores. Não fazia aula em grupo porque tinha vergonha.
    Iniciamos fortalecendo o quadríceps com caneleiras, aumentando o número de repetições e a carga lentamente. Depois de quatro meses passamos a fazer agachamentos. Além disso fazíamos todo o trabalho de fortalecimento e alongamento geral. Sempre acreditei que o corpo funciona como uma unidade. Não se cura um joelho fortalecendo apenas a musculatura envolvida com o joelho, mas reorganizando o corpo como um todo, postura, estabilização, auto imagem. Relaxando e fortalecendo toda a máquina fisiológica que é o corpo humano. 
   Depois de cinco meses de aulas o joelho de Tânia estava ótimo. Ela já subia e descia escadas com facilidade e podia agachar para brincar com a sobrinha. Era uma aluna dedicada e atenta, nunca faltava às nossas sessões. Joelhos machucados de alunos  que não conseguem manter a frequência de treinamento podem demorar até um ano para se recuperar.  Esse não era o caso de Tania e ela já cogitava a hipótese de fazer aulas de grupo, parecia estar mais segura, mais presente em seu próprio corpo. Emagrecera um pouco, sua postura se tornou mais equilibrada, mais vertical. A cabeça, antes projetada para frente, numa tentativa desesperada de compreender o outro, estava agora no seu lugar de direito: no meio dos ombros. Essa nova postura, além de mais eficiente, menos dolorida, é muito mais elegante. 
   Certo dia, passados mais de seis meses de aula ela chegou com o joelho inchado e sentindo muita dor. Decepcionada eu perguntei:
    - O que houve? Como seu joelho piorou tanto?
    Ao que ela respondeu sorrindo:
     - Valeu a pena!

       A aula de grupo teve de ser adiada vários meses. Tania se casou um ano depois.



domingo, 16 de agosto de 2015

Poema pássaro...


   Hoje eu quis um poema.
   Acenei em sua direção chamando, vem!
   Ele me olhou desconfiado, poema pássaro.
   Vem! Pedi mais forte.
  Ele, ainda desconfiado, viu minha mão estendida;
  nela eu segurava meu coração apaixonado.
  Apaixonado e correspondido.
  Vem! Anseio um poema de amor correspondido:
  pássaro raro.
  Sem sofrimento, sem susto, sem mágoa.
  Vem!
  Hoje eu quis um poema de amor que subjuga o tempo,
  que degusta, adivinha, morde, afaga. Um amor que existe.
  Sintoniza, afina.

   O poema? Não sei se veio. Veio isso...

   O amor? Inunda.


segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Amor de Photoshop ou Felicidade de Internet


     Encontraram-se em frente ao parque. Depois de um beijo apaixonado e levemente constrangedor para os passantes ele pegou a sacola pesada da mão dela.
     - Mas você já tem a sua para carregar. Pode deixar essa comigo querido!
    - Eu posso perfeitamente carregar ambas, e nem mesmo vou precisar das duas mãos. Você precisa desfilar nesses lindos sapatos. São novos?
     Deram-se as mãos e iniciaram uma pequena caminhada até o gramado central, em frente ao casarão antigo.
     - Sim, comprei especialmente para hoje.
     - Você fica linda de salto alto meu amor! E esse vestido lhe caiu especialmente bem.
      O suor aparecia nas costas da elegante camisa branca que ele vestia. Deslocaram-se lentamente pelos caminhos acidentados e irregulares do parque, enquanto ela tentava não torcer o tornozelo.
     Quando chegaram ao ponto de encontro viram a fotógrafa acenando para eles alegremente e sorrindo. Flutuavam sobre a sua cabeça alguns balões vermelho cintilante em forma de coração. Ela fazia gestos eufóricos e tinha uma voz meio esganiçada. Havia sido muito bem indicada por amigos.
      O casal caminhou até ela.
      - Como estamos hoje? Prontos para registrar o amor de vocês?
     - Prontíssimos.
     Disse ela. Ele apenas sorriu.
     - Então vamos começar. Deixem suas bolsas ali naquele banco. Muito bem, muito bem! Por aqui. Você sobe nesse tronco de árvore, cuidado com os sapatos! Você se posiciona logo abaixo dela, segurem a mão um do outro. Isso, isso, muito bom. Você olha para o infinito, como uma santa. E você olha para ela. Tente uma expressão de adoração, devoção. Isso!!! Excelente!
    A fotógrafa ia falando enquanto ajeitava o tripé com a imensa máquina.
    Ela se desequilibrou e quase despencou.
     - Não foi nada, não foi nada. Tudo sob controle! Ela disse apoiando-se no ombro dele.
     - Está bem, mais cuidado com esses saltos mocinha. Agora os dois no meio do gramado, cada um com um balão de coração. Aqui, aqui está, um para cada um. Olhando nos olhos um do outro, por favor. Que casal apaixonado! Vocês são um exemplo de amor, de felicidade! Quero um olhar profundo! Quero ver a paixão que sentem um pelo outro. Isso! Clic! Clic! Clic!
     - Solte o cabelo agora. Linda! Sentem-se na fonte, por favor. Pode ser no colo dele. Sorrindo! Que maravilha!   Clic! Clic! Clic!
    - Um beijo apaixonado! Clic! Clic! Clic!
     - Ótimo, muito bom! Vamos trocar o figurino? Tem um banheiro lá na frente, vamos ter de caminhar alguns metros. Certo. Você coloca o vestido branco agora, e você trouxe o terno?
     - Trouxe.
     -Ótimo. Então pode vesti-lo. Vamos fazer as próximas fotos num outro cenário. Na beira do lago.
     A fotógrafa acendeu um cigarro enquanto aguardava o casal trocar de roupa. Mudou a lente da máquina. Fotografou algumas plantas. Retirou alguns objetos de sua enorme sacola e montou um piquenique na beira do lago. Uma toalha xadrez, uma cesta, uma garrafa de vinho.
     -Prontos? Muito bom. Ali, no gramado na beira do lago. Sentem-se, por favor. Vocês devem parecer confortáveis sentados no chão. Cada um com uma taça de vinho. Um brinde.
     Clic! Clic! Clic!
     - Se quiserem tomar um gole, o suco de uva está geladinho.
     Clic! Clic! Clic!
     - Agora um livro para cada um. Finjam que estão lendo enquanto desfrutam a maravilhosa companhia um do outro. Pode deitar a cabeça no colo dele. Vamos deixar as taças de vinho aparecendo. Muito bom!
     Clic! Clic!
     - Bem, acredito que já temos um bom material para trabalhar. Vou editar as fotos e envio  ainda essa semana para que vocês possam postar no dia dos namorados está bem?
     Enquanto falava ela já ia organizando seus objetos e enfiando várias coisas dentro da sacola.  
     - Está ótimo! Obrigada! Gostamos muito do seu trabalho.
     - A segunda parcela do pagamento que nós combinamos deverá ser paga hoje tudo bem?
     - Claro, sem problema.
     - Então está bem, mantemos contatos. Vocês foram ótimos. Tchau!
     - Tchau.
     Eles se olharam, sorriram e se beijaram mais uma vez. Aproveitaram para fazer selfie do beijo.
     - Você está realmente linda!
     - Você também. Acho que nunca vi você de terno antes. Fica muito elegante e sexy.
     Mais um beijo.
     - Tenho que ir.
      -Está bem querido.
     - O que você vai fazer hoje a noite?
     - Vou descansar, trabalhei muito essa semana. Estou realmente exausta.
     - Certo, vou tomar uma cerveja com alguns amigos.
     - Ótimo. Me manda uma foto do bar está bem?
     - Combinado.
     Despediram-se calorosamente.
    Antes de ir para casa ela trocou de roupa no mesmo banheiro. Vestiu um short e uma sandália baixa. Enfiou as outras roupas na sacola. De dentro do táxi deu um telefonema e mandou três e-mails. Em casa ela tomou banho e vestiu um pijama. Tirou vários selfies, deitada, vendo TV, preparando o jantar.
      Pouco depois ele já estava na mesa do bar conversando com os amigos.
     - Cara! Essa mulher não tem nada a ver comigo. Eu não sei o que eu vi nela, e agora não sei como terminar. Ela parece um polvo cheio de tentáculos se enroscando em mim, me pedindo coisas, me pressionando. Vocês precisam ver, ela é completamente louca por mim! Completamente fixada, não pensa em mais nada além de me agradar. Ela me sufoca.
     O celular vibra em cima da mesa e chega uma foto dela de pijama preparando o jantar. Ele mostra para os amigos, faz uma careta e todos riem. Ele responde ‘bom apetite meu amor’, com ar de pouco caso, solta o celular e continua falando.
     Meia hora depois ele recebe mais uma mensagem com a frase ‘quase dormindo, aproveita sua cerveja, te amo muito’. Ele responde com a frase ‘a galera te manda um beijo, também te amo!’ e uma foto dele com os amigos. Todos sorriem e dão ‘tchauzinho’.

      Nesse exato minuto ela saía de outro táxi. Em algum ponto da cidade. Vestindo seu figurino de balada, usando sua maquiagem mais caprichada, e seus sapatos novos de salto alto.


terça-feira, 21 de julho de 2015

Infâncias


     Estavam no Brasil havia alguns dias e resolveram conhecer um novo ponto turístico da moda. Ela brasileira, ele alemão e o filho, o pequeno Caio de cinco anos nascido no Brasil e criado na Alemanha.
     Foram os três passear na mais nova atração carioca para turistas estrangeiros: o teleférico que passa por cima do Complexo do Alemão.
     Devo confessar que, como boa moradora do Rio que sou nunca estive lá e nunca tive vontade ir. Mas minha irmã e seu marido alemão resolveram levar meu pequeno sobrinho branquinho para ver como é o terceiro mundo de verdade. Ponto para eles corajosos e idealistas. Eu estou mais para medrosa e descrente.
     Mas lá foram eles. Num lindo dia de sol ver de perto o maravilhoso mundo da favela.
     A estação estava quase vazia, só havia uma mulher e um menino, negros, esperando o teleférico. Couberam todos no mesmo cubículo suspenso. Sentaram-se.
     Quando o teleférico começou a se mover minha irmã se encantou e entristeceu com a vista. Dois sentimentos opostos contidos num mesmo segundo da existência. Coisa comum entre os brasileiros, afinal. Encantamento com a beleza, com o céu, com a cadeia de montanhas ao fundo. Tristeza pelas milhares de vidas amontoadas naquele bairro sem oportunidades, sem tratamento de esgoto, sem asfalto, sem esperança.
     A mulher encostou a cabeça no vidro e fechou os olhos, parecia cansada. As mãos cruzadas no colo. A roupa limpa e desbotada.
    As crianças de pronto entabularam uma conversa.
     - Oi! Como é o seu nome?
     - Caio, e o seu?
     - Carlinho. Você tem quantos anos?
     - Cinco.
     - Eu também. Ano que vem vou pra escola.
     A mulher abriu os olhos sem desencostar a cabeça do vidro.
     - Você ‘morra porr’ aqui?
     Carlinho riu do sotaque do outro menino.
     - Você fala engraçado! De onde você é?
     - Eu ‘morro’ na Alemanha.
     O menino negro arregalou os olhos e abriu um largo sorriso mostrando dentes bem branquinhos.
     - E eu moro no Alemão!
     Foi a resposta num tom muito orgulhoso. As mulheres sorriram de fininho, o alemão tirava fotos da favela. A mulher voltou a fechar os olhos. Caio bateu palmas.
     Minha irmã me contou a cena e eu a escrevi porque achei bonita.
      Meu cunhado não entendeu a conversa.
      A mãe de Carlinho já esqueceu, ela adormeceu alguns segundos antes do teleférico parar, mas foi a primeira a sair segurando seu filho pela mão. Minha irmã pediu para tirar um retrato dos dois meninos, mas a mulher disse que estava com pressa, não tinha tempo. Minha irmã se sentiu mal por ter pedido aquilo, se arrependeu. Mas não havia mais o que fazer. Não há como apagar palavras ditas e escutadas. É assim mesmo a vida.
      Caio contou na sua escola alemã que tem um amigo negro que mora no Alemão, lá ninguém sabe o que é favela e não há nenhum negro na cidade do interior da Alemanha. Muitas crianças, aos cinco anos só viram negros na tv. As professoras adoraram a história.

      Do Carlinho não sei, espero que esteja na escola. Mas o Caio, eu sei, não é o mesmo de antes do Carlinho...

domingo, 12 de julho de 2015

Conteúdo e Continente


 “A parte falsa, esquecida desde Descartes, é a que nos diz que a mente não produz suas próprias sensações, e por isso, essas se mantém exteriores a ela. Mas, por outro lado, delas a mente se apropria. Vivendo-as. A unidade do ‘vivido’ e do ‘vivente’ já não é, com efeito, justaposição espacial ou relação de conteúdo e continente: é uma inerência mágica” Sartre

  
  Ela acordou muito cedo. Antes mesmo de o sol levantar-se para aquecer aquele lado da Terra. Estava escuro e frio. O despertador tocou e ela suspirou profundamente. Dormira bem, mas não o suficiente, como sempre.
   Sentiu o colchão macio e a coberta pesada. Suspirou mais uma vez. Esticou braços e pernas num espreguiçar felino. Contou dez respirações de olhos fechados, e então os abriu.
  Rolou de lado e escorregou as pernas para fora da cama enquanto se sentava. Apoiou os pés vestidos por grossas meias no chão, sentindo a textura do tapete de sisal. Levantou-se e caminhou até o banheiro. Jogou água fria no rosto, escovou os dentes, trocou de roupa, fez café. 
   Ela saiu do prédio junto com os primeiros raios de sol. Olhou para o céu: seria um dia de sol. Adorava os dias de inverno com sol.
   Sorriu. Um sorriso largo, disponível.
  Pegou a bicicleta e saiu rápida pela cidade sonolenta. Poucos carros, calçadas quase desertas. Os primeiros pássaros ensaiando os sons do dia. Ela adora sair para trabalhar de bicicleta.
   Parou no primeiro sinal e esperou. Sentiu o cheiro dos escapamentos. O apoio dos ísquios no banco da bicicleta: desconfortável. Os primeiros raios de sol bateram na sua camiseta preta e aqueceram a pele por baixo.
   O sinal indicou que ela poderia avançar. Contraiu os músculos e pôs a bicicleta em movimento. Pegou a ciclovia e aproveitou para acelerar. Sentiu o coração batendo mais depressa, a respiração respondendo à demanda do corpo em movimento. A música que tocava nos seus ouvidos:
   ‘Socorro não estou sentindo nada, nem medo, nem calor, nem fogo, não vai dar mais pra chorar nem pra rir... já não sinto amor nem dor, já não sinto nada...por favor uma emoção pequena, qualquer coisa...tem tantos sentimentos deve ter algum que sirva...’
   Respirou fundo. Sentiu o suor escorrendo pelas costas.
    Não tinha a menor ideia do que era não sentir nada. Ela sentia tudo. Sentia sempre: o sol, o vento, a tristeza do mendigo, a agressividade do motorista, a gentileza do bom dia desconhecido, os cheiros da cidade, a sede na garganta. Sentia pena, raiva, amor. Não fugia de nenhum sentimento e de nenhum sentido. Não fugia...
   Freou sua bicicleta chegando ao seu destino. 
   Viu uma pedra no chão e abaixou-se para pega-la.
   'Sim há muitas pedras em meu caminho, guardo todas pra construir um castelo.'
   Jogou-a para cima, pegou de volta.
    Caminhou em direção ao portão, da pedra não sei....





segunda-feira, 6 de julho de 2015

O vizinho


     Mudara-se para uma pequena casa de janelas azuis, numa rua arborizada. Ainda estava se adaptando à nova rotina, havia muito o que fazer depois de uma mudança. Fazia quase um mês que desencaixotava, dormia e ia para o trabalho. Não conseguira sequer explorar a vizinhança, conhecer a rua ou reparar nos vizinhos.
    Quando saía para trabalhar estava sempre cansada, ficava até altas horas arrumando, arrumando, arrumando. Acordava como que 'zumbizando', tomava uma xícara de café  e saía distraída rumo ao trabalho mecânico que realizava, e que havia muito tempo pretendia deixar. Mudara-se para aquela rua num momento de muita angustia, precisava arrumar a casa, para sentir que, de alguma forma, conseguiria organizar sua vida,  sua mente e talvez, um dia, seu coração.
     Num domingo comum, quando completou um mês que habitava a casa nova ela terminou a última caixa, a última gaveta. Preparou um chá lentamente, fazia cerca de 12 graus. Sentou-se na janela, enrolada num cobertor. Colocou os pés calçados com meias quentes em cima do parapeito e finalmente observou com calma a rua à sua volta. As árvores, os carros estacionados. Os poucos ruídos, o céu cinza e a chuva fina.     
   Ouviu uma voz cantando baixinho, parecia uma voz conhecida. Apurou os ouvidos. Era Billie Holiday. Suspirou profundamente. 'A trilha sonora perfeita para um fim de tarde chuvoso'.
    Então ela percebeu de onde vinha a música: na casa à frente, um rapaz estava sentado na janela com uma caneca na mão. Ele acenou, ela sorriu. Brindaram de longe com suas xícaras. Ficaram ouvindo a música ainda muito tempo, cada qual na sua janela.
     No dia seguinte, ela acordou mais cedo do que de costume. Preparou seu café da manhã com cuidado, pegando cada objeto que estava no seu devido lugar, sem precisar procurar por nada. Isso lhe trouxe um prazer simples, e um conforto que não sentia havia muito tempo.
    Quando abriu a porta para pegar o jornal encontrou um CD escrito: 'bem vinda à vizinhança'. Leu o jornal ouvindo Billie e pensando no rapaz da casa em frente. 
     Sim, ele era bem bonito!

sábado, 4 de julho de 2015

Pausa.


     
      Outro dia saí de bicicleta debaixo de uma chuvinha fina para trabalhar. Torcendo para que o tempo não piorasse vesti minha capa de chuva: um dos meus trajes de super heroína do dia a dia. Pedalando da segunda para a terceira aula parei num sinal. Apoiei o pé direito no meio fio e olhei para o céu. Vários 'azuis' em meio às nuvens de chuva. O sol bateu na minha pele e aqueceu meu rosto.  
     Me ocorreu que um raio de sol somente ganha seu real significado depois de uma boa chuva e uma noite fria. 
     Os ciclos não são apenas inevitáveis, mas necessários para nossa própria sobrevivência: sol e noite, alegria e dor, dia e noite, rotina e novidade, juventude e envelhecimento, agitação e imobilidade, ruído e silêncio, vida e morte. E entre eles as pausas, o nada.
     Assim é a existência, como uma música. Alguma vezes nós até somos bons concertistas, e se não podemos tocar cada nota ao menos decidimos o ritmo. Mas na maioria das vezes, os ciclos naturais se sobrepõem à nossa vontade. 
    Quando conseguimos ouvir a música da vida, e dançar nesse ritmo único, passamos pela existência de forma mais plena e verdadeira, permitindo que a real beleza de estar vivo aconteça. 
     Tudo isso me veio à mente num segundo, observando os carros correndo e as pessoas paradas esperando o sinal fechar. Nenhuma delas percebeu como o tempo mudava para melhor, com as nuvens dando espaço para o sol. Todos olhavam a luz vermelha que lhes indicava que deveriam ficar parados, ou digitavam algo fundamental em seus celulares.
    O mundo virtual não tem nenhum ciclo. Ele é uma linha constante de informação, novidades, conexão, consumismo, opinião, histeria, que está levando nossas mentes à exaustão.  Sem os ciclos estamos começando a entrar em colapso. Perdemos o espaço da pausa, da dor, do recolhimento. Perdemos o momento do sono e então, como a mente não desliga tomamos drogas para dormir.
    Internet, tv, vídeo game, jogos on line. Ansiedade. Insônia.
   A mente segue orgânica, incompreendida, perdida, cansada. A mente não quer interatividade, ela precisa de um intervalo. Uma pausa que é um encontro consigo mesmo, e desse encontro surge uma nova energia para a próxima ação. 
    O mundo virtual parece ter substituído o mundo interior. Nos tornamos seres inacabados, com medo de enxergarmos a nós mesmos e preferindo nossos avatares. Nossos avatares que nunca dormem, não tem rugas ou soltam gases, porque não tem um corpo imperfeito para ser tocado. Nossos avatares que só amam outros avatares, e nunca se tocam.
    E nós, onde estamos? Quem somos?
    De verdade.

     

terça-feira, 30 de junho de 2015

Presente enfeitado


   Aos dezoito anos decidiu sair do interior e ir estudar na capital. O ano era 1968. Alguns dizem que esse ano não acabou e talvez seja verdade para ela...
     Ganhava sanduíches nos bares onde tocava seu violão enquanto estudava filosofia na universidade e astrologia nas horas vagas. Além dos sanduíches, o dinheiro era curto e houve uma semana em que a base da alimentação foi abacaxi. Estava em promoção na feira.
  Nessa época fez muitos amigos que se autodenominavam hippies. Pessoas com cabelos despenteados e roupas coloridas que queriam inventar uma nova sociedade, uma nova maneira de viver. Ela não compreendia muito bem aquele movimento, começou nos Estados Unidos contra uma guerra e virou muitas outras coisas. Mas ela sabia que era contra todas as guerras, e que era contra a ditadura e por isso passou a usar seus lindos cabelos longos descabelados e as longas saias coloridas também. Foi a maneira que ela encontrou de ir contra aquilo de  que discordava sem ser presa e torturada.
     Ela só não gostava muito das substâncias variadas que os amigos usavam para atingir uma suposta abertura de consciência. Costumava se sentir desorientada, sua consciência parecia não se abrir em nada e ela acabou por desistir delas.
     Adotou a alimentação vegetariana. Sonhou um dia viver numa comunidade de pessoas que trabalhariam pelo bem comum. Sonhou muitos sonhos de um mundo melhor, ela e aquele 'beatle'.
     Um dia ela resolveu ir ver o mar pela primeira vez. Junto com outros amigos foi de carona até o litoral. Quatro dias para percorrer os quatrocentos  quilômetros até o oceano.
     Quando ela viu o mar pela primeira vez foi uma emoção límpida, serena. Naquele momento ela se sentiu parte de algo maior. Nunca tinha visto tanto azul.
     Sentiu pela primeira vez o cheiro de maresia. Ouviu pela primeira vez o som das ondas.
     Pegou seu violão, sentou-se na areia e tocou. E cantou. E chorou.

     No fim do dia descobriram um galpão abandonado onde poderiam passar a noite. Outras pessoas na mesma situação já estavam se acomodando por lá. Ouvia-se conversas aqui e ali, outros violões. Cheiros de fumaças.
     Quando todos já estavam dormindo, ela escutou estranhos ruídos próximos à parede. Ligou sua lanterna, e do ângulo que estava deitada no chão viu três baratas enormes a alguns centímetros de distância.
     Levantou-se imediatamente e saiu dali sentindo o ar da noite que começava a esfriar. Perambulou pela cidade até encontrar uma igreja. Acomodou-se nas escadas e adormeceu por alguns minutos quando foi acordada por um rapaz que tocava gentilmente seu ombro.
      - Olá! Está tudo bem com você?
      Ela teve um sobressalto. Abriu os olhos e viu um rosto que usava óculos de grossos aros pretos.
      - Me desculpa, eu não quis te assustar.
      - Tudo bem. Você quer alguma coisa?
      - Você pretende passar a noite aqui?
      - Sim, algum problema?
      - Vai esfriar. Você não gostaria de dormir na minha barraca?
     - Mas que absurdo, você nem me conhece e já vem me fazendo uma proposta como essa?
     - Não, não! Você não entendeu. Eu te empresto a barraca e fico de fora.
     Silêncio.
      - Você pode repetir?
      Ele repetiu.
      Ela aceitou, relutante.
     Ela dormiu dentro da barraca e ele no chão na porta, como que velando seu sono.
     Eles passaram os dias que se seguiram juntos. Em que momento ela o convidou para entrar é uma dúvida que permanece. Mas o fato é que eles voltaram no fusca dele de Garopaba para Porto Alegre. Fusca esse em que eu aprendi a dirigir vinte anos depois quando completei dezoito anos. A primeira das três que ele ensinou a dirigir.

      Os muitos sonhos foram ficando pelo caminho. As comunidades não deram certo. As guerras não acabaram. As consciências não se abriram. Mas o amor deles durou, imperfeito, único, necessário como a vida.

    E essa história, já modificada pelas fantasias e desejos de quem contou e de quem ouviu, permanece enfeitando o presente, pelo menos de quem quiser ter um presente enfeitado.

domingo, 14 de junho de 2015

Dia dos namorados


        Há mais de vinte anos mandei meu amor embora, impedida de conter a ansiedade de viver algo que nem eu sabia do que se tratava. Mandei meu amor embora.
       Vinte anos depois me deparo com ele vagando, meio à deriva. Eu também estava sem rumo e tive a sorte de ele me mostrar uma direção e querer ir comigo. 
      Hoje juntos, somos leme e motor, e se o vento soprar forte, nosso amor é a vela, branca, imensa e forte.

domingo, 24 de maio de 2015

Diário de bordo

Querido diário,

     No último dia de viagem, finalmente comecei a escrever em suas pálidas páginas, perdão por me demorar tanto.
      Já fizemos o check in para retornar à São Paulo. O voo está atrasado uma hora e quinze minutos e como chegamos cedo no aeroporto temos quatro horas até o embarque.
     Porque foi que chegamos tão cedo? Porque saímos correndo do hotel como dois assaltantes, depois do constrangido e silencioso café da manhã? As cadeiras vazias na mesa acomodavam nossa sensação de fracasso e frustração, e foi delas que fugimos afinal? Mas não foi dessas mesmas que nos evadimos quando saímos de São Paulo para Buenos Aires?
     Resolvi então pegar um táxi e ir a um museu. É muito bom quando o câmbio nos permite esse tipo de luxo. Com as malas despachadas, cartão de embarque na bolsa, a quinze minutos do aeroporto, estou sozinha sentada num café depois de ter como companhia Frida Kahlo, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral. Meu atencioso companheiro de viagem preferiu ficar lendo no aeroporto.
     De minha parte adorei Buenos Aires, mas estou com saudades de casa e até do trabalho.
    Acabou de chegar um café, uma água sem gás e dois pequenos bolinhos de chocolate que lembram brigadeiros. Nesses dias na Argentina, eu e Paulo nos tornamos cada vez melhores amigos e piores amantes. Não do ponto de vista do ato em si, este sempre foi satisfatório, mas dessa vez ele foi inexistente. Será que meu marido sempre foi assim: meigo, lento, preguiçoso, hipotônico? Ou foi mudando ao longo dos anos? Não me lembro.
     Quando chegar em casa terei de fazer dieta, sinto-me gorda e flácida. Tenho dores nas costas e câimbras nos pés a noite. Muita câimbra. Às vezes fico pensando se isso não seria o início de uma doença degenerativa. Se continuar assim daqui a pouco terei de dormir sentada (esses pensamentos devem ser uma consequência  esdrúxula da falta de sexo). Digo que me sinto gorda e flácida mas não estou realmente gorda, é mais uma sensação moral de ter passado dez dias comendo mais do que o necessário e sem nenhuma atividade física. 
     Eu penso em comida e sexo praticamente o tempo todo, sou uma pecadora em tempo integral. Gostaria muito de, aos 35 anos, fazer sexo uma vez por mês com meu marido e ser feliz assim. Não sou. Na verdade sou um buraco cheio de pedaços da minha autoestima destroçada. E hoje, me sinto gorda, flácida e culpada por tantos dias indisciplinados que não serviram para me reaproximar do meu marido. Me sinto culpada por ter comido demais, bebido demais, numa tentativa histérica de parecer alegre e agradável e talvez despertar algum desejo.  
   Tirar férias sempre me fez sentir uma orca, mas férias sem sexo me fez sentir uma orca encalhada.
  Querido diário, volto para o aeroporto agora, vou trabalhar um pouco enquanto aguardo o embarque. Tenho vários contratos para analisar. Quem sabe se trabalhando perco algumas calorias de culpa.

    Até a próxima...


terça-feira, 19 de maio de 2015

O amor nos tempos de internet

     O post dela no facebook:

Lonjura, quero mais brincar de saudade não, quero meu amor pertinho dos meus olhos. Quero brincar de chamego, de sorriso acompanhado, de toque desfrutado, de palavras ao vivo e não via satélite. Quero perto, junto, próximo, aqui, encostado. Dá pra ser?

     A resposta dele:

O mau humor da saudade transforma sussurro em resmungo e poeta em peão, que cava a terra seca em busca da água dos teus beijos e do remédio  para a solidão...

terça-feira, 12 de maio de 2015

Auto antropofagia esquizoide


     As mulheres da minha geração cresceram inseridas num dilema: nossas mães não queriam ser como nossas avós. Parece um dilema bobo, mas não é.
     Por gerações, mulheres se espelharam em outras mulheres mais velhas, havia um padrão a seguir, quisesse você ou não. Era um modelo fixo e seguro. 
     Subitamente uma geração disse 'não'. Não queremos ser obrigadas a seguir nenhum padrão. Então,  elas simplesmente negaram o padrão existente. Terei que me desculpar pela frase anterior que saiu de supetão, porque  não foi absolutamente  nada simples. Nossas mães tiveram que quebrar tudo e fazer diferente da geração anterior, de forma a abrir caminho para as próximas que viriam. Elas precisaram queimar roupas de baixo, cortar o cabelo, vestir calças. Cada ato desses, hoje vistos com certo desdém, era uma dura batalha.
    E foi com esse preceito que nós crescemos: o feminino é opressor. 
    Minha geração teve como exemplo mulheres que negaram o gênero, foi necessário.
  Como via minha mãe, e várias outras mulheres, lutando firmemente contra os padrões do ideal da mulher, me nasceram caninos afiados, e com eles eu mordi vorazmente o feminino em mim. Aos vinte e cinco anos eu nunca havia me maquiado, nunca havia feito as unhas, não usava saia nem vestido, nenhuma bijuteria. Não aceitava ajuda do sexo oposto para nada.

   (Demorei mais ou menos trinta e cinco anos para me parir mulher. Já tinha me parido mãe, profissional, esposa. Mas de quantos partos uma pessoa precisa? Vamos nos parindo ao longo vida várias vezes e nunca nos tornamos inteiros. Somos um eterno vir a ser, provavelmente nossa beleza se encontre aí. Não nossa: das mulheres. Mas nossa: da humanidade. Somos uma espécie que busca.)

     Um dia, por fim, me pari mulher. E foi um alívio.     
   Finalmente percebi que eu não precisava temer o batom, o salto alto, uma mão gentil a me conduzir para fora do veículo. Percebi que a minha força não seria diminuída por um homem forte.
    Eu temia a resignação, a frigidez, o lugar da vítima. Temia a infelicidade. De tanto medo de ser infeliz fui mastigando o feminino em mim saboreando o sangue que escorria pelo canto da minha boca. E junto com meu próprio sangue fui mastigando corações masculinos perdidos no emaranhado que era tentar compreender algo que nem eu compreendia. 
   Um dia, finalmente me pari mulher. A primeira expiração dessa nova pessoa trouxe uma libertação e finalmente eu deixei de gastar energia numa auto antropofagia esquizoide.    
    Isso aconteceu faz só cinco anos. Ainda sou uma mulher aprendendo a ser mulher.
    
     Hoje, aos quarenta e um anos, estou me parindo pessoa desaterrada. Sem remorso, preciso declarar: não sou gaúcha, não sou brasiliense, não sou carioca, não me sinto nem mesmo brasileira. Não me apego à cultura, os únicos padrões que me interessam são os da ética. Tenho um coração nômade, um corpo ajustável, uma mente metamórfica. Sou mãe, filha, irmã, mulher, homem, bicho, vento, vírus, cura. Meu corpo que viveu, que adormeceu e despertou, minha carne e meu sangue, meus ossos e minha alma esses tem as minhas marcas de guerra. Essas marcas foram paridas muitas vezes, e muitas vezes eu me dei as trevas e de novo a luz. Trevas e luz. Mas no fim, sempre, luz...

    Nunca perfeita, mas sempre em busca.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Universos paralelos


 
    A primeira meia hora sentado naquele café, numa mesa na calçada foi totalmente absorvida pelo celular. Emails, zapzap, facebook. Compromissos. Respostas importantes. Distrações inúteis.
    Então sentou-se ao seu lado uma moça e pediu dois expressos. Não um duplo. Nem um depois o outro. Dois ao mesmo tempo. Ela deixou o celular em cima da mesa. Um Nokia daqueles muito antigos que pareciam um tijolinho e que nada mais faziam do que ligações mandar sms. Ela ficou um bom tempo com as duas xícaras e o celular na sua frente sem tocar em nenhum dos três. 
    'Já tive um desses a muito tempo. Durou anos. É praticamente imortal. Se cair na água é só abrir, esperar secar e montar: fica novinho em folha.' Ele pensou em puxar o assunto com ela, mas não parecia que a moça quisesse conversar.
    Olhou para rua e observou as pessoas passando por alguns minutos.
    Pensou que estava viciado no seu celular repleto de funções.
    Logo a sua frente um homem negro do tipo macho carioca conversava com uma mulher. Ele tinha a cabeça raspada com a mesma lâmina que fazia a barba como se prologasse o gesto do maxilar, subindo pela costeleta, passando pela cabeça e terminando do outro lado do rosto para resolver a questão mais rapidamente. Camisa com os botões abertos mostrando os pelos do peito. Pochete de couro virada para tás. Postura e gestos de macho alfa do tipo: 'eu uso pochete sim, e pego a mulherada mesmo assim.' 
    A conversa entre os dois estava animada. Ele não conseguia escutar oque os dois conversam, estava a poucos metros de distância, mas o barulho do trânsito de Copacabana não permite esse tipo de intromissão. 
     Um terceiro personagem entra em cena. Um homem chega por trás e cutuca o primeiro no ombro que se vira e sorri. Esse segundo usa penteado estilo mulet muito bem tratado, talvez escovado. Óculos escuros na cabeça com aro vermelho, camiseta pólo branca bem justa, calça jeans colada e sapatos de couro muito bem cuidados. 
   Eles se abraçam e o primeiro homem dá fortes pancadas nas costas do segundo. Segue uma animada conversa. O homem da camisa branca ri, tira os óculos da cabeça, coloca na gola e arruma os cabelos enquanto o outro coça a virilha.
    Eles se despedem, novos tapas nas costas. O segundo homem beija o primeiro no rosto e esse sorri sem nenhum sinal de constrangimento. O segundo homem sai. A mulher apenas observa.
     A primeira conversa é retomada de onde parou, a cena durou menos de cinco minutos.
     A moça da mesa ao lado já tomou os dois expressos e pega um livro.
     Ele volta para o seu celular.

   'Curioso é o mundo concreto.'  

sábado, 25 de abril de 2015

Amor

  Ela encontrou o amor. Desculpe, mas aconteceu. E ele é real: o que se pode fazer? O improvável encontro entre dois indivíduos, ranzinzas, chatos, impacientes, inquietos ocorreu de forma avassaladora e definitiva. Me desculpem os que não  acreditam no amor. Mas o fato é que aconteceu. 
    Ela estava sentada num café, uma xícara e um livro. Suas companhias preferidas, até o advento dele.
     Ouviu o ruído da porta abrindo e elevou os olhos por um breve instante. Ele entrou.
    Se reconheceram imediatamente.
   Não foi um reconhecimento exotérico. Estavam vinte e três anos sem se ver, mas se conheciam de uma época de imatura e inocente rebeldia.
   Ele caminhou na direção dela. Sorrisos. Cumprimentos. Conversa. Afinidades céticas. Diferenças evidentes.
    Marcaram um jantar. Vinho. Conversas. Novas afinidades. Mais diferenças. Cama. Orgasmo. 
    - Quero repetir.
    - Eu também.
    - Mas não quero me envolver.
    - Nem eu.
    - Ótimo. Amigos com benefícios?
    - Combinado.    
    Outros jantares. Cama. Orgasmos.
     (Tentaram outras pessoas, na hercúlea tarefa de não se envolverem. Colegas de trabalho, orgasmos insatisfatórios, chatos.)
     Cinema. Passeio pela orla. Cama. Dormir abraçado.
     Café da manhã. Caminhar de mãos dadas.
      Mãos dadas!
     - Oque significa isso de caminhar de mãos dadas?
     Ela disse exasperada.
     - Só que eu quis segurar a sua mão.
     - Não não, caminhar de mão dadas é coisa séria.
     - Então tá, se você não quer não seguro mais.
   Mais jantares. Cama. Dormir abraçado. Café da manhã. Sorrisos. Risos. Conversas, muitas conversas. Uma briga, uma reconciliação.
      - Estou apaixonada por você!
     Silêncio.
     Três dias sem se ver e sem se falar.
     Ela teve certeza de que o havia perdido. Precipitara-se. Já era. 
     Campainha. Coração acelerado, borboletas no estômago.
     Com um buquê rosas na mão: 'quer namorar comigo?'

     Isso foi a 35 anos. Eles nunca tiveram filhos. Se amaram todos os dias mesmo quando se xingaram.
     Ela encontrou o amor. Um amor que não exige perfeição, apenas atenção. Um amor feito de erros e acertos, onde cada um admite a sua parte em ambos, sem esconder os próprios enganos mas sem humildade. Um amor feito de reforço positivo. Pronto para expressar a mais dolorida das mágoas de maneira cuidadosa, e escutar sem julgamentos.
     Eles se encontraram e é real. Não há mistérios, só honestidade, respeito e admiração. 
   Não existe vida sem percalços, tristezas e desencantos, mas cada um desses foi mais fácil por terem um ao outro. Choraram juntos muitas vezes, mas riram outras tantas.
    E seguem juntos, construindo uma história nova. Em detrimento do que se supõe, seguem, enaltecendo um ao outro, após 35 anos. O amor é simples, não precisa de tantos mandamentos, de tanta invenção, de tantos clichês. Basta um abraço apertado, um elogio, um tom de voz, um pedido de desculpa.
      O amor aconteceu com eles. E é real.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Da percepção do tempo


      Ele saía três vezes por semana de ônibus para fazer a sua ginástica.
     Atravessava fora do sinal a rua movimentada às nove horas da manhã. Esticava o braço como um guarda de trânsito e confiava que os carros parariam para um senhor de 88 anos.
    Esperava alguns minutos no ponto e subia no ônibus sem maiores dificuldades. Era pra isso que fazia aqueles desagradáveis agachamentos, três séries de quinze rigorosamente.
    Quando chegava na aula, ia se trocar. Levava a roupa de ginástica dentro de uma pasta de couro. Não gostava nada da ideia de pegar ônibus de traje esportivo. Chegava de bermuda social e camisa, fechada até o último botão, sapatos de couro. Sua mulher havia lhe comprado uma mochila, mas ele gostava da pasta de couro, muito mais elegante, ele diria.
     Naquele dia ele saiu de casa mais feliz do que o de costume. Havia recebido a notícia de que seria avô de um casal de gêmeos.
    Quando chegou a sua aula, depois de tirar a camisa branca muito bem passada, dependura-la cuidadosamente e vestir sua camiseta de exercícios, ele caminhou até a sala.
    Contou a novidade para a professora.
   - Parabéns! Que legal ser avô de gêmeos aos 90 anos.
   Ele respondeu muito sério levemente agressivo:
   - Eu serei avô com 89! 89!
    

domingo, 19 de abril de 2015

Sobre a felicidade


   Muitos e muitos anos atrás, numa galáxia muito distante eu li um texto de um mestre indiano. Nesse universo do qual vos falo eu não acredito mais em mestres, nem nos indianos e nem em nenhum outro. Mas lá, naquele tempo e espaço havia uma moça grávida de vinte anos que lia todos os livros de auto-ajuda, tinha cristais e patuás e acreditava em Deus. Ela pariu de cócoras sem anestesia um bebê lindo que ela acreditava que não daria trabalho nenhum e que ela, mesmo mãe, seguiria a vida na direção de sonhos como se nada houvera.
     Aquela moça leu um texto sobre a felicidade. O mestre dizia que felicidade era uma decisão, um estado de espírito e não a aquisição de bens materiais. 
     Aquilo ficou na cabeça daquela moça grávida, ela levou um tempo, quatro anos, para conseguir decidir que era feliz, mas essa decisão nunca mais mudou.
     Hoje vejo a felicidade não como uma vida perfeita, mas como uma vida plena. Plena de erros e de acertos, de encontros e desencontros. Porque na verdade, um não existe sem o outro. Não é possível acertar o que já está certo, nem encontrar o que nunca foi perdido. É preciso deixar-se perder, deixar-se sofrer, deixar-se chorar.
      Felicidade não é um constante estado de alegria, isso é histeria consumista. Felicidade é uma certeza simples.
     Certeza de que fizemos o melhor que nos era possível. E o faremos sempre.
     Certeza de que amamos, e o declaramos.
     Certeza de errarmos muitas vezes, para acertar umas poucas e valiosas.
     Certeza de que mudamos de ideia tantas vezes que não sabemos mais onde foi o ponto de partida.
     Certeza de que fizemos poucos e bons amigos, esses serão para sempre.
   Certeza de que não temos certeza de nada, a não ser da ética que permeia nosso desacertos, desenganos, desventuras.
    É na preciosidade da ética que repousa a paz de espírito necessária para absorver as pequenas belezas da vida, e delas nutrir-se da alegria necessária para suportar as lágrimas que vem e virão.
      A cada instante nos é dada a opção de escolher entre o certo e o errado, entre sorrir e fechar a cara, entre um 'bom dia' e o silêncio mal humorado, entre mudar de direção ou seguir naquela que não nos interessa mais. Cada pequena (ou grande) ação é uma gota num rio, e é você decide se ele correrá caudaloso e repleto de peixes ou fino e triste. Porque no fim, todos nós desaguamos no mar infinito. A opção que nos é dada é: como será o rio da nossa vida?
     Felicidade é uma decisão, não depende de nada.


ps. me perdoem o texto de auto ajuda, acordei mimimi
        
       


domingo, 12 de abril de 2015

Perspectiva oscilante

 
     Hoje fiz minha primeira aula de stand up. Foi uma experiência impactante. Começar cambaleando, joelhos tremendo, com medo da prancha, do mar, e terminar em pé sobre as águas.
     Depois da primeira vacilante meia hora, em que eu não conseguia parar de tremer, meus olhos só miravam a prancha e eu ria um riso nervoso, uma moça passou por  mim e disse: 'rema contra as ondas que facilita'. Enormes ondas de dez centímetros diga-se de passagem. Funcionou. 
     Funcionou e eu pude olhar para frente, vi no horizonte do mar azul um cargueiro abarrotado de containers, do meu lado direito as pedras do forte de Copacabana, do lado esquerdo o Pão de Açúcar. Mais alguns minutos me entendendo com a instabilidade da prancha, consegui fazer a volta e ver a cidade que estava atrás de mim. Só nesse momento percebi que estava tendo uma manifestação e que era possível ouvir os gritos do carro de som. Até então eu estava surda apenas tentando permanecer de pé.
     Elevei um pouco mais os olhos e vi, subindo os morros por trás dos prédios um emaranhado de casas, sem reboco, com mínimas janelas, empilhadas umas sobre as outras. Comunidade ou favela, lá estava. Seus moradores provavelmente trabalhando nos bares abertos do bairro, nas barracas da praia, nas farmácias, nos mercados e em todo o comércio ao nível do mar que abria num domingo como muitos outros. Do meio desses bares e dos prédios do bairro não imaginamos que exista um universo paralelo por detrás da hipocrisia. Lá de longe, do meio do mar, me foi possível vislumbrar um ínfimo pedaço da contradição brasileira
  'Chega de comunismo.' Gritou o carro de som. 'Todos na cadeia!' 'Fora Dilma!' 'Abaixo a corrupção!' Hino Nacional. 
    Camisinha roxa na água, copo descartável boiando.
    'Olha a caipirinha!' Grita o ambulante lá da areia. Um manifestante 'vestido de Brasil' pede duas.
    'Vai pra Cuba.'
    Turistas branquelos. Bundas de fio dental. Caras pintadas de verde amarelo. Lixo na areia.

    'Patrícia acabou seu tempo.' Me diz o rapaz negro que trabalhava na barraca de stand up. 'Que pena! Agora que me entendi com a prancha!' 'Pode ficar mais, mas custa mais vinte' 'Mais vinte?'     
     Hino nacional. Helicóptero. Mar azul azul.  
    'Vou ficar mais'. Ok, ele responde, vira-se e sai remando.

    Sento na prancha. De costas para a cidade. 
    O cargueiro sumira.
    Céu azul azul. Muitas fragatas.
    Me jogo no mar. A água está fria. Afundo, afundo, meu pé não toca no chão. Daquela distância da margem o mar é profundo.
     E o Brasil festivamente superficial.







  
   

terça-feira, 7 de abril de 2015

Náufraga hormonal


     Depois de resolver meia dúzia de afazeres aborrecidos. Ser mal atendida. Ficar cerca de quarenta minutos numa fila insuportável. Comprar remédio para dor de cabeça. Ter uma discussão com o filho mais velho. Ela resolveu entrar num café: um capucino e um pedaço de bolo fariam bem, sem dúvida.
     Antes de escolher uma mesa passou no banheiro para lavar as mãos. Parou em frente ao espelho e se achou velha. 'Pra quê toda essa correria? A vida não é uma competição afinal.' Abriu a torneira com uma certa violência. Estava com vontade dar uns bons socos em alguém.
    Foi então que ouviu um diálogo dentro de um dos cubículos.
    - Levanta pra eu te limpar querido.
    - Mas vó, a mamãe me limpa sentado.
    - É mesmo?
    - Sim.
     Pausa.
    - Então está bem.
    - Como você vai fazer vovó?
    - Ué! É pra isso que a vovó faz Pilates.

    Ela sorriu para o espelho, secou as mãos e foi tomar seu café.
   Ainda tinha muitas aulas para dar naquele dia, e várias vovós estavam esperando seus exercícios diários.
     Um trabalho do qual se gosta e feito com competência pode ser uma bela tábua de salvação  para uma náufraga com tensão pré menstrual.

domingo, 5 de abril de 2015

água, peixe, estrela do mar, pedra, essência


      Depois de muito lutar com um câncer, finalmente, num final de tarde de inverno, ele desistiu. Não fazia frio nem chovia, mas foi o pior inverno dos últimos trinta e dois anos. 
     À medida que a doença avançava e os ossos sucumbiam um a um ele se encurvava um pouquinho. Mas nunca o suficiente para voltar o olhar para o chão. 
     Um dia arrumou um pedaço de pau que usava como bengala. Ele chamava de cajado e se dizia o Gandalf do Senhor do Anéis. 
      Foi emagrecendo rapidamente. Perdendo o apetite.
     O  oncologista,  que  nega até hoje que essa informação tenha saído da sua boca, disse que nesse estágio a melhor coisa seria um cigarro de maconha: melhora o apetite, diminui as dores e aumenta o sono. Minha mãe, que foi sua enfermeira, deu três telefonemas, e alguns amigos foram visita-los com gramíneas de folhas estranhas, orgânicas e cultivadas em vasos nas varandas dos bairros de classe média. Um médico, um advogado, um músico. Ele ria e dizia que virara maconheiro depois de velho. Ele, que sempre dissera que é ilegal e pronto, argumento único e inviolável. A  maconha fez com que ele voltasse a rir por mais algum tempo. E a comer. 
     Certo dia foi internado para exames, e seu corpo se recusou a reagir por mais tempo. O que deveria ser  uma noite virou cinco e na sexta noite, algumas horas após a minha chegada, seu corpo decidiu que bastava.
      No velório, que começou às nove da manhã e só acabou às cinco da tarde passaram mais de trezentas pessoas. Eu não conhecia a maioria. As paredes não foram suficientes, cobertas de coroas de  flores que vinham não sei de onde. As pessoas  passavam por mim e depois dos pêsames  se apresentavam: 'eu trabalhei com seu pai fui secretária dele, fui secretária da sala ao lado, era colega de sala, ascensorista, fui chefe do seu  pai, eu servia o cafezinho, sou o secretário do ministro'. Assim o dia foi passando, lento, numa sucessão de apertos de mãos e 'sinto muito' que se tornou um mantra um ritual de despedida.
      Eu passei o dia inteiro lá, ao lado do caixão. Só saí quando me mandaram embora. 
      Não me lembro se chorei. Me lembro que senti fome e vontade de ir ao banheiro, mas não fui.
      Então a capela fechou.
      A cremação seria no dia seguinte. Suas cinzas foram de carro até a praia onde ele passara tantas férias.
     Eu tinha trinta e dois anos quando meu pai faleceu, mas a vida de um pai não é contada em anos. A vida do herói está num mundo sem tempo. O resto é mal-entendido, e há tantos mal-entendidos numa vida humana.  
     Com meu pai não. Não havia nenhum. Ele era simples. Sem complicações. 
     Eu não acredito em espíritos, adoraria acreditar. Para mim meu pai virou água, peixe, estrela do mar, pedra. E  com a minha  saudade e a  memória dos ensinamentos dele faço o cimento da minha existência.

   Ainda bem que entre nós não houve mal-entendido. 
    No momento mais difícil da minha vida, com os olhos cheios de lágrimas ele me abraçou e me disse, 'não fica assim filha, tudo se resolve'. Ele era assim, e assim foi até o fim. Sem nunca trair sua essência. 

sábado, 4 de abril de 2015

Pálida alienígena


    Eu cresci numa cidade muito pequena, menor do que a menor cidade que qualquer um tenha ido, exceto os habitantes daquela cidade. Uma cidade de pessoas brancas, bem brancas. Nada de pardos, mulatos.
    Só andei de elevador pela primeira vez aos oito anos, quando saí daquela cidade de prédios de no máximo dois andares. Foi só quando saí de lá que vi pela primeira vez um telefone. Meus contemporâneos falam de programas de TV de sua infância, eu não os assisti. Nossa minúscula televisão preto e branco não me interessava. Não havia vídeo game, nem computador, nem celular. Nunca tinha andado de escada rolante. Eu não sabia oque era um shopping ou uma brinquedoteca.
     Eu amava  o jardim, e pra além dele, todos os espaços, muros, árvores, pedras, riachos. A cidade era minúscula, mas o meu mundo era enorme, infinito.
    Por volta dos sete anos nos mudamos para a capital. Uma cidade começando onde meu pai teria um emprego melhor e eu e minhas irmãs melhores escolas. Isso de fato aconteceu. Eu tive que estudar muito para acompanhar a turma da minha idade e nos dois primeiros anos eu era a pior aluna da escola. 
    Nosso apartamento era pelo menos duas vezes maior do que a pequena casa,  no interior. Mas o mundo lá fora encolheu incrivelmente. Meu universo ficou restrito ao pilotis do bloco. Nas escadas eu podia me sentar e ficar um pouco sozinha. Eu aprendi a subir no teto do elevador, e ali ficava esperando alguém entrar e movimenta-lo. Acho que minha mãe nunca soube disso, até agora.
    Lá na pequena cidade eu tinha apenas um amigo, e sempre pareceu suficiente. Um bom amigo que corria comigo pelas poças de lama depois da chuva. Ele tinha cabelos cor de ouro e uma pele quase transparente. Mas aqui não, aqui a coisa era bem diferente. Todos tinham tantos amigos. Era difícil pra mim entender aquela dinâmica. Eu me vi atropelada. 
    Até então eu tinha tempo livre e espaço. Eu cuidava das minhas irmãs, montava brinquedos de madeira, criava girinos. Aqui não havia girinos, nem tempo. E era uma obrigação ter amigos, muitos amigos. E um dia, finalmente, fiz uma amiga muito boa que tinha muitos amigos. Ela era a mais popular e a mais engraçada. E isso teve que bastar para mim. Não foi possível me adequar, e ainda não é. Eu não sou o tipo amiga de todo mundo, azar meu.
    Essa minha amiga, que o é até hoje, é linda. Pele cor de chocolate. Cabelos bem crespos que ela nunca alisou, sempre fez os cortes mais legais, sempre usou roupas coloridas. Estudamos a vida toda, nos colégios públicos da cidade onde eu era a única loira de olhos azuis. E detestava isso. Me sentia diferente. Como se já não bastasse ser caipira, ainda por cima eu tinha que ser tão magra, tão alta, tão loira. E com conteúdo escolar defasado, olha que beleza?
   Lá pela quinta série me apaixonei pela primeira vez. Nunca contei isso para ninguém, nem para minha amiga. Ele tinha a pele de um escuro como céu mais escuro e o sorriso que parecia um sol a se abrir. Mas é claro que ele não se interessaria por mim, magrela e pálida. Por isso eu apenas escrevi algumas poesias de amor e ouvi música romântica no rádio. Foi tudo que eu fiz a respeito. 
    Um dia essa paixão adolescente  passou.
    E assim me fui, até o terminar o ensino médio, uma alienígena pálida.

   Hoje eu olho ao meu redor, e vejo tantas cotas para negros que meu inconsciente infantil não compreende. Claro, eu sei que historicamente o país, a humanidade deve muito a esse povo. Mas eu, que fui uma criança que me sentia discriminada por ser branca tenho nas minhas células uma memória oposta a que  me ensinaram nas aulas de história. 
     Meus maiores ídolos são negros, minha melhor amiga da vida é negra.
     Não compreendo o racismo. Mas é fato que ele aí está. Em algum lugar obscuro da nossa condição humana.  
     Cotas resolvem? Não sei. Sigo buscando as respostas.

     Esse texto era para contar um pouco da minha infância. Acho que me perdi. Essa sempre foi uma característica minha que hoje as palavras atenuam. Sempre foi tão fácil me perder. Mas no caso de um texto posso ir ao início e recomeçar num novo caminho. Hoje não. Hoje será assim, um texto desvio. Começa com infância, termina como uma homenagem. Uma homenagem à diferença. 

      Sejamos diferentes.
   Caipiras, brancos, negros, populares, tímidos, magros, gordos. Que possamos nos respeitar e admirar o que interessa, de verdade.




domingo, 29 de março de 2015

Uma colcha do tamanho do mundo


     Aos noventa e cinco anos o coração finalmente lhe falhou. Levaram-na ao médico, o filho e a nora, angustiados. Ela estava calma. Apesar da palpitação e da falta de ar sabia que não era sua hora.
     O médico lhes disse que o coração estava muito fraco  e que ela teria de três a quatro meses de vida.
     O casal no banco da frente do carro voltou para casa num silêncio doído. Ela olhava a paisagem lá fora e pensava como o dia estava bonito.
     Ao chegar em casa ela pegou seu crochê. 'Tenho que terminar essa colcha está bem?' Combinou com seu coração. É bem verdade que aquele crochê começou como um pequeno centro de mesa, mas no caminho de casa ela mudara de ideia. Seria uma colcha de casal das grandes.
     Nessa noite ela pegou um livro: Cem anos de Solidão. Nunca havia lido um nobel de literatura. Sempre preferiu livros simples, romances água com açúcar. Mas dessa vez decidiu que leria um livro sério.
     À medida que avançava na história sua colcha crescia. À medida que os nomes dos personagens se repetiam, sua colcha ganhava novas cores e desenhos. Os personagens rodavam em sua mente numa sucessão de 'Josés Arcádios', 'Aurelianos', 'Úrsulas' e 'Amarantas'. Ela já não sabia mais quem era filho ou neto de quem. O livro foi virando um mantra de gerações que se sucedem, nos eternos ciclos de vida, morte e renascimento.
    Algumas testemunhas contam que a colcha cresceu tanto que poderia cobrir uma quadra de esportes e tinha tantas cores que era impossível conta-las. Seu filho não desmentia nem afiançava tal informação.
     Um dia ela se deu por satisfeita. Olhou a sua volta e viu uma profusão de cores ao seu redor como uma piscina de sonhos. Decidiu que era grande o bastante. Deitou-se, abriu seu livro e leu as últimas dez páginas.
     Adormeceu enrolada em uma pequena parte de sua colcha que cobria quase todo chão do quarto, o livro apoiado no peito.
     Quando seu filho chegou em casa às sete horas da noite, ele chamou por ela. Uma vez, depois outra. Então ele soube.

    No dia seguinte ela faria noventa e nove anos...
   

sábado, 28 de março de 2015

Inteira


   - Olá!
   - Oi. Podemos conversar?
   - Podemos.
  - Onde você estava?
  - Acho que eu não preciso responder essa pergunta, mas o farei num sinal de que não me importo com a sua opinião. Saí cedo de bicicleta e fui tomar café na padaria.
   - Nossa quanta agressividade!
   - Não é mesmo!
   - Olha eu queria te pedir desculpa. Me dá uma segunda chance, por favor!
   - Você disse uma frase que impossibilitou uma segunda chance.
   - Que frase.
   - 'Estou saindo com outra pessoa'.
   - Porque essa frase?
  -Porque ela significa que isso dura a um tempo. Enquanto nós procurávamos apartamento para morar juntos você 'saía com outra pessoa'!
   - Me perdoa!
   - Perdoar o que?
    - Eu ter te traído.
  -Você não me traiu, traiu a si próprio. Transformou sua vida numa mentira, menosprezou seus sentimentos. Menosprezou sua insatisfação comigo, menosprezou seu desejo por outra mulher, desrespeitou seus planos comigo. Você vive a meses um engodo. Como você suportou escolher um sofá comigo?
   - Eu amo você.
   - O que isso significa?
   - Eu não sei.
  - Que pena! Então não serve. Eu não me sinto traída, não se preocupe não há nada para ser perdoado. 
  - Eu saí de casa a dois dias e senti muito a sua falta. Falta da nossa vida.
  - Porque?
  - É confortável aqui, essa casa deu trabalho pra montar. Eu... eu não sei o que você quer ouvir.
   - Eu também não sei, mas certamente você não o disse até agora. O que exatamente te trouxe de volta?
   - Você está sendo muito dura comigo! Eu senti sua falta e vim, só isso. Não pensei no que iria dizer.
  - Pois é, você não pensou antes de sair, não pensou ao voltar, não pensou quando tudo isso começou.
   - Não, eu agi com o coração. Eu sempre te amei, mas não sei porque. E de repente senti desejo por outra mulher. 
   - Você tem quarenta anos, se você quiser continuar agindo apenas com o coração vai viver sua vida assim, de relação em relação, sem saber porque começou ou porque acabou. Tudo bem se você quiser isso, mas da próxima vez deixe isso claro pra quem entrar nessa com você. Eu, particularmente procuro uma outra coisa.
   - É, talvez eu seja assim mesmo. Estou sempre procurando uma paixão, e quando ela acaba eu me desinteresso.
   - O coração agindo sozinho funciona mais ou menos assim. Não está errado, desde que você não minta. Por favor, não minta mais pra mim.
   - Você acha que é possível explicar porque se ama alguém.
   - Acho necessário. O amor entre um homem e uma mulher precisa de admiração, e você tem que saber o que admira no outro. A paixão pode até ser indecifrável, o amor não.
   -Vamos tentar mais uma vez? Já que temos tudo esclarecido agora.
   - Tentar de novo porque?
   - Eu não sei.
   -Resposta errada.
    Ela disse isso sem nenhum rancor. 
    Virou-se e foi até a cozinha se servir de um copo de água.
   Ouviu o barulho da água fluida descendo da garrafa para o copo seguido do som seco da porta batendo.
   Olhou ao redor. Teriam que separar as coisas. O apartamento montado a apenas três meses seria partido em dois.
    Ela não sofreu com a ideia. Não ficaria bem de uma hora pra outra. Estava triste, desiludida, cansada.
     Mas acima de tudo, sentia-se inteira.






   

terça-feira, 24 de março de 2015

Panças espasmódicas


    Estava eu a caminhar languidamente pela calçada do Leblon, observando os transeuntes a minha volta, hábito que sempre exercitei.
    Três senhores de abdômen deveras avantajado, sentados num banco de madeira alguns metros a minha frente, falavam alto. 
    Cada um com uma lata de cerveja na mão. 
   Bermudas de marcas caras que não combinavam com as camisetas úmidas de suor. Chinelos nos pés. Três figurinos típicos de três machos acalorados de classe média alta.
    Assumiam os três, a mesma postura despencada, caída para trás. Os joelhos bem afastados, para dar espaço a masculinidade vultosa que mal devia caber dentro das calças, tocavam o joelho do coleguinha ao lado, que por sua vez também necessitava dar espaço a sua respectiva corpulência.
     Riam alto. Falavam alto. Gesticulavam. Não tentavam esconder o assunto interessantíssimo sobre o qual falavam.
     Mesmo porque, macho que é macho fala alto.

     - A teúda e mateúda do Marcão? Hahaha! Ele paga tudo pra ela!
     - Lógico! Uma mulher daquelas só iria com o Marcão por dinheiro!
     - Se me pagasse tudo eu também ia! Dizem que ele paga o aluguel, a faculdade, supermercado.
     - Mulher é tudo vagabunda.

      O hahaha grupal foi acompanhado de panças espasmódicas e algumas gotas de cerveja caídas nas camisetas chiques!

     - Tsc. Sei lá. Se me pagassem tudo eu também ia.
      Repetiu o mais jovem do trio.

     Pausa na confabulação.
     Eu acabara de passar do grupo.  Não me virei. Apenas imaginei a coreografia gestual dos três levando a latinha a boca e bebendo um gole de cerveja.

     - Tu ia comigo se eu te pagasse?

     Não pude ouvir a resposta, seguia meu caminho sem mudar o passo.

domingo, 22 de março de 2015

Escrevinhadora clandestina...


     Sou uma escrivinhadora clandestina.
     Escrevo de um refúgio interno.
     De onde posso assumir meus medos e orgulhos,
     porque lá, na folha desabitada,
      não são meus, esses vis sentimentos.
     Clandestinamente,
     espiono meus personagens.
     E através deles comemoro, choro, desespero, muitas vezes apaixonada.
     Escrevo clandestina.
     Roubo horas dos deveres,
     dos afazeres.
     Roubo horas da vida adestrada.
     E permito que a alegria inútil,
     de imaginar-me escritora, 
     se transforme em histórias caligrafadas.
     Escrevo clandestina.
     As palavras brotam de uma toca
     obscura da minha'alma, docemente aclarada.
     Serena finalmente,
     ela descansa e aquieta.

     Até surgir a próxima urgente necessidade
     de pegar a caneta e escrevinhar, de novo, e de novo...
     Sigo capturada.
   

   
   

sexta-feira, 20 de março de 2015

Divisão e paixão



     A cidade, no interior bem ao sul do Brasil, era dividida em três. Ninguém comentava, mas todo mundo sabia. Havia os lugares frequentados pelos alemães, os frequentados pelos italianos e os lugares, provavelmente mais animados, frequentados pelos negros. Ninguém questionava isso, pelo menos não naquela cidadezinha de pessoas sensatas que acabavam de passar por uma segunda grande guerra. 
    Mas o fato é que os alemães e italianos se detestavam mais até do que detestavam aos negros, isso era inegável. Havia além de tudo uma dessemelhança religiosa: católicos e protestantes, e os orixás no meio do atrito. Muitas famílias italianas falavam sua língua natal, e o mesmo acontecia com os alemães. As músicas e os hábitos alimentares eram diferentes. Nas casas dos italianos mesa farta, muita comida, pronta para receber quem mais aparecesse, conversas em voz alta. Nas casas alemãs comida certa, sem desperdícios, simplicidade, conversas comedidas.
    A diferença não era apenas nutricional, incontestavelmente. Alemães chamavam os italianos de esbanjadores exagerados, e esses chamavam aqueles de contidos e chatos.

     As três partes viviam em perfeita harmonia, desde que não se misturassem.

   Um dia aconteceu algo que desestabilizou suavemente aquele equilíbrio de tolerância tão bem consolidada: um alemão calvinista de olhos verdes se apaixonou perdidamente por uma linda italianinha católica.
       'Mas porque uma italiana, você só pode estar doido!! Com tantas moças alemãs de boa família disponíveis!' Diziam os amigos indignados. 'Isso é inaceitável, sempre foi desse jeito e não será agora que irá mudar'. Eram as palavras dos familiares.

    O fato é que cerca de trinta e cinco anos depois, ao pé do meu berço de recém nascida, minha avó italiana cantava para mim em alemão.

terça-feira, 17 de março de 2015

Os sonhos e o tempo

   Respirou fundo e abriu os olhos. Girou de lado e sentou-se na cama. Calçou as pantufas e caminhou até o banheiro. Parou em frente ao espelho e ficou olhando a imagem.
    Cabelos desgrenhados.
   Ela viu a passagem do tempo nas marcas do seu rosto, sem botox, sem laser, sem nenhuma esticadela, nenhum ácido. O tempo implacável, sem subterfúgios, sem maquiagem.
     A ruga entre os olhos era a mais exasperante. Uma marca indelével entre as sobrancelhas que lhe conferiam uma rabugice que não era sua. Aquela ruga não lhe pertencia. As outras, ao redor dos olhos eram rugas de riso e de choro, marcas de guerra, contavam sua história. Mas aquela entre os olhos nada mais era do que a marca do travesseiro que ela apoiava em cima da cabeça, deitada de lado, apertando contra o ouvido na hora de dormir para diminuir os ruídos. Essa posição amassava seu rosto como um buldogue. O problema é que ultimamente ela acordava amassada e não desamassava. A falta de colágeno é algo exasperante. Parou de dormir com o travesseiro em cima da cabeça, mas aquela ruga sobreviveu. Implacável. Herança de todos aqueles anos de sono com a cara enfiada entre os travesseiros. Ela lhe lembrava de todos os anos que passara dormindo, um terço de sua vida.
   Esticou o pescoço aproximando o rosto do espelho e puxou as sobrancelhas para fora. Quando soltou a ruga reapareceu.
    Afastou a cara do espelho. Não era velha, 40 anos. Mas percebeu que quando ficava séria, pensativa, tinha um ar de enfado. A musculatura já não era tão firme, escorregava levemente pelos ossos. Sua cara, indolente, virava um pintura impressionista, derretida. Dessas que quando você olha muito de perto tem uma impressão e quando olha de longe tem outra. 
    O tempo. Impresso. Sem negociação.
     Escovou os dentes, caminhou até a a cozinha e preparou um café. Recebeu uma mensagem de sua filha, e uma de seu marido. A primeira vinha seguida de uma flor, a segunda de um coração. O cheiro de café invadiu a casa. Colocou uma música para tocar. Sua mãe ligou. Uma amiga convidou para almoçar no dia seguinte. Colocou água nas plantas
     Com a xícara de café na mão, ela apoiou os cotovelos no parapeito da varanda e olhou para o céu. Estava com saudades das suas irmãs. Hoje tentaria falar com elas, cada uma num canto do planeta.
    Lembrou do rosto que vira no espelho. O tempo urge nas suas bochechas, nas partes de seu corpo antes preenchidas agora murchas, e nas partes antes delgadas agora abauladas. O tempo urge nas articulações, no sangue.
     Então ela concluiu que alguns sonhos não podiam mais esperar. E sorriu tomando um longo e quente gole de café.