domingo, 24 de abril de 2016

torta de amor


  Ela acordou decidida a passar o dia na cozinha. Faria um complicada torta em quatro etapas: a massa, o creme, a mousse, o merengue.
  Saiu de casa bem cedo com a lista de ingredientes no bolso para garantir que não esqueceria de nada.
    O porteiro cumprimentou-a e abriu a porta de vidro para ela. Ele ficou observando-a caminhar até a pracinha e sentar-se.
     Ela sentiu uma brisa fresca rara naquela época do ano. O céu estava muito azul. Crianças brincavam. Permaneceu lá um tempo, sorrindo com sua coluna ereta. Algumas crianças vinham conversar com ela, as babás vestidas de branco acenavam. Ela acenava de volta: 'moças simpáticas'.
                                                                      . . .

    Acordou um pouco mais tarde do que o normal. Apesar de ser um dia da semana comum ele tinha terminado todos os projetos urgentes na noite anterior e podia se permitir mais tempo na cama. Deu bom dia à esposa e foi preparar o café. Viu um livro de receitas aberto em cima da mesa da sala. Torta de limão.
     Depois do café com uma torrada, saiu.

                                                                        . . .

     Ela levantou-se do banco da praça com alguma dificuldade. O rapaz bonito da banca de jornais  gritou um bom dia, ela sorriu e acenou. Caminhou até o muro branco e no portão azul o porteiro já a esperava.  Ela subiu um lance de escadas e entrou no apartamento. Deixou a lista em cima da mesa junto ao livro de receitas, e foi se deitar. Sentia-se exausta. Adormeceu por algum tempo.
      Despertou ouvindo um piano sendo tocado na sala. Foi até lá e encontrou um rapaz tocando e uma moça sentada no sofá lendo. Ela pensou em peguntar quem eram eles e o que faziam ali mas viu a torta de limão em cima da mesa e se esqueceu do que queria dizer.
     Caminhou até a torta, enfiou um dedo no merengue e depois na boca. 'Hoje eu me saí muito bem, que torta bonita!' ela pensou com seus botões.

                                                                    . . .

  Meia hora antes na confeitaria da esquina:
   - Qual é torta de hoje 'seu' Antônio?
   - Torta de limão. Com merengue em cima por favor.
   - Mande meus cumprimentos para sua avó. Ela está bem?
   - Mandarei 'dona' Thereza. Ela está bem, obrigada!

                                                                     . . .

    No fim do dia o porteiro ganhou uma torta de limão que dividiu com a esposa e os seis filhos depois do jantar.
    Só haviam cortado duas fatias dela.
    Duas fatias grandes e doces...


quarta-feira, 13 de abril de 2016

eu...

   
     Eu já tive tanto medo de ser normal, que vivia num estado de constante inquietação em busca da verdade (seja lá que verdade é essa). Eu tinha medo de não ser eu, e procurava por mim, negando qualquer coisa que parecesse enquadrada, ou comum.
     Mas ao longo do tempo, essa busca foi ficando cansativa e quando finalmente eu parei de procurar me descobri um ser bastante estranho, curioso, inquieto e rabugento. Fiquei satisfeita. Parei de ter medo de ser normal e agora tento não parecer tão esquisita quanto eu realmente sou...

sábado, 9 de abril de 2016

Créditos de felicidade


     A gente precisa, na vida, acumular créditos de alegria, de coisas boas. Viver muitas coisas legais mesmo, divertidas, prazerosas, de forma que na hora do perrengue, (mas perrengue de verdade, não vale inventar motivo)  temos cartuchos de felicidade acumulados. Quando uma pessoa querida adoece, um amigo precisa de ajuda, um amor acaba, daí a gente tem de onde tirar, pra ajudar, pra superar, pra lutar...se não acumulamos alegrias, a vida vai se tornando amarga e quando a situação aperta de verdade, desistimos. 
     Até aí todo mundo entende e concorda. O problema é como acumular esses créditos, onde guarda-los afinal? Dando atenção para as pequenas coisas boas da vida, muito pequenas, quanto menores melhor.
     Você pode começar se alegrando com um êxito no trabalho, o nascimento de um bebê saudável, a recuperação de uma pessoa doente, o reencontro com um amigo antigo, fazer as pazes depois de uma briga, viajar. Mas vamos diminuir mais um pouco as pequenas alegrias: uma boa refeição, em boa companhia, um bom papo,uma caminhada na praia, no parque, por aí. Um dia de sol para pedalar. Um dia de chuva para beber um bom vinho. Um dia qualquer para ler um livro. Ir ao cinema. A filha que vem para o almoço. Planejar uma viagem. Um roupa nova. Um banho de cachoeira.
    Mas vamos diminuir um pouco mais as pequenas alegrias: ver fotos antigas, ouvir música no café da manhã de domingo. Descobrir um filé de salmão fresco em promoção. Um 'bom dia' na calçada. Tempo livre. Saber que se fez um trabalho bem feito. Um abraço apertado. O primeiro gole de uma cerveja bem gelada numa dia de muito calor. Segurar uma xícara de café quente com as duas mãos num dia muito frio. Um cheiro no cangote.
   Será que podemos diminuir ainda mais as pequenas alegrias? Sentir um prazer simples num suspiro profundo antes de abrir os olhos ao acordar. Espreguiçar-se com a satisfação de estar vivo. Experimentar uma alegria genuína ao sentir o gosto do café. Não engolir o café, não saltar da cama, não andar como um sonâmbulo. Desfrutar verdadeiramente o cheiro da chuva, a luz do outono, o som do mar. Nas pequenas alegrias nada é trivial. Para percebe-las, se faz necessário um corpo sensível e uma mente presente. Esses dois pormenores são a diferença radical entre uma vida desfrutada e uma vida perdida. Um corpo sensível, disponível, conectado e uma mente atenta. É o corpo que nos traz para o presente, pois a mente insiste em vagar entre o que já foi e o que será. O corpo por sua vez só existe nesse tempo, nesse lugar. Sem ele, a mente se perde na depressão de viver no passado ou numa ansiedade constante ao tentar prever o futuro.
   É somente no presente que acumulamos os créditos de felicidade, não é em nenhum outro lugar além desse onde você se encontra agora, exatamente agora. 

    
   







domingo, 3 de abril de 2016

espelho


    Aos vinte e um anos estava sentada na sala de casa com sua filha recém nascida no colo. Os minúsculos olhinhos se abriram. Cheirou o cabelinho, passou o nariz na pele macia da bochecha. 'Somos nós duas agora pequenina, eu vou dar conta, você vai ter que confiar em mim'. Ela confiou, nunca houve dúvidas entre as duas. 
    Desde pequena aquele bebê olhava para ela muito séria, como se já soubesse das coisas da vida. Olhava muito desconfiada para as pessoas que não conhecia. Não ria com bilu-bilu. Quase não dormia. Sua mãe nunca ouvira falar de um bebê de três meses que dorme às onze, acorda às seis e não cochila de tarde, nada. Aquela pequena criatura estava sempre ligada em tudo, com sua carinha séria desconfiada. No entanto, quando sua mãe dizia 'pula que eu te pego', ela pulava sem pestanejar.
    Cresceu muito rápido, rápido demais na opinião da mãe. 
     A confiança entre as duas só aumentou. Para elas não existe amor automático, precisa admiração, e uma tenta merecer a admiração da outra.
      Hoje ela tem a idade que a mãe tinha quando engravidou.
    Um dia, ao longo dessa história, alguém comentou com a filha: 'você não parece nada com a sua mãe'. Ela respondeu: 'talvez não por fora, mas por dentro eu sou praticamente um espelho dela'. 
    Espelho feito de amor, de admiração, em que não se sabe quem é reflexo, quem aprende com quem. 
      A filha não tem a mesma profissão da mãe, nem engravidou na mesma época, nem lida com os problemas da mesma forma. E ainda assim ali está o espelho, que só as duas vêem. O espelho sutil dos valores.