domingo, 29 de março de 2015

Uma colcha do tamanho do mundo


     Aos noventa e cinco anos o coração finalmente lhe falhou. Levaram-na ao médico, o filho e a nora, angustiados. Ela estava calma. Apesar da palpitação e da falta de ar sabia que não era sua hora.
     O médico lhes disse que o coração estava muito fraco  e que ela teria de três a quatro meses de vida.
     O casal no banco da frente do carro voltou para casa num silêncio doído. Ela olhava a paisagem lá fora e pensava como o dia estava bonito.
     Ao chegar em casa ela pegou seu crochê. 'Tenho que terminar essa colcha está bem?' Combinou com seu coração. É bem verdade que aquele crochê começou como um pequeno centro de mesa, mas no caminho de casa ela mudara de ideia. Seria uma colcha de casal das grandes.
     Nessa noite ela pegou um livro: Cem anos de Solidão. Nunca havia lido um nobel de literatura. Sempre preferiu livros simples, romances água com açúcar. Mas dessa vez decidiu que leria um livro sério.
     À medida que avançava na história sua colcha crescia. À medida que os nomes dos personagens se repetiam, sua colcha ganhava novas cores e desenhos. Os personagens rodavam em sua mente numa sucessão de 'Josés Arcádios', 'Aurelianos', 'Úrsulas' e 'Amarantas'. Ela já não sabia mais quem era filho ou neto de quem. O livro foi virando um mantra de gerações que se sucedem, nos eternos ciclos de vida, morte e renascimento.
    Algumas testemunhas contam que a colcha cresceu tanto que poderia cobrir uma quadra de esportes e tinha tantas cores que era impossível conta-las. Seu filho não desmentia nem afiançava tal informação.
     Um dia ela se deu por satisfeita. Olhou a sua volta e viu uma profusão de cores ao seu redor como uma piscina de sonhos. Decidiu que era grande o bastante. Deitou-se, abriu seu livro e leu as últimas dez páginas.
     Adormeceu enrolada em uma pequena parte de sua colcha que cobria quase todo chão do quarto, o livro apoiado no peito.
     Quando seu filho chegou em casa às sete horas da noite, ele chamou por ela. Uma vez, depois outra. Então ele soube.

    No dia seguinte ela faria noventa e nove anos...
   

sábado, 28 de março de 2015

Inteira


   - Olá!
   - Oi. Podemos conversar?
   - Podemos.
  - Onde você estava?
  - Acho que eu não preciso responder essa pergunta, mas o farei num sinal de que não me importo com a sua opinião. Saí cedo de bicicleta e fui tomar café na padaria.
   - Nossa quanta agressividade!
   - Não é mesmo!
   - Olha eu queria te pedir desculpa. Me dá uma segunda chance, por favor!
   - Você disse uma frase que impossibilitou uma segunda chance.
   - Que frase.
   - 'Estou saindo com outra pessoa'.
   - Porque essa frase?
  -Porque ela significa que isso dura a um tempo. Enquanto nós procurávamos apartamento para morar juntos você 'saía com outra pessoa'!
   - Me perdoa!
   - Perdoar o que?
    - Eu ter te traído.
  -Você não me traiu, traiu a si próprio. Transformou sua vida numa mentira, menosprezou seus sentimentos. Menosprezou sua insatisfação comigo, menosprezou seu desejo por outra mulher, desrespeitou seus planos comigo. Você vive a meses um engodo. Como você suportou escolher um sofá comigo?
   - Eu amo você.
   - O que isso significa?
   - Eu não sei.
  - Que pena! Então não serve. Eu não me sinto traída, não se preocupe não há nada para ser perdoado. 
  - Eu saí de casa a dois dias e senti muito a sua falta. Falta da nossa vida.
  - Porque?
  - É confortável aqui, essa casa deu trabalho pra montar. Eu... eu não sei o que você quer ouvir.
   - Eu também não sei, mas certamente você não o disse até agora. O que exatamente te trouxe de volta?
   - Você está sendo muito dura comigo! Eu senti sua falta e vim, só isso. Não pensei no que iria dizer.
  - Pois é, você não pensou antes de sair, não pensou ao voltar, não pensou quando tudo isso começou.
   - Não, eu agi com o coração. Eu sempre te amei, mas não sei porque. E de repente senti desejo por outra mulher. 
   - Você tem quarenta anos, se você quiser continuar agindo apenas com o coração vai viver sua vida assim, de relação em relação, sem saber porque começou ou porque acabou. Tudo bem se você quiser isso, mas da próxima vez deixe isso claro pra quem entrar nessa com você. Eu, particularmente procuro uma outra coisa.
   - É, talvez eu seja assim mesmo. Estou sempre procurando uma paixão, e quando ela acaba eu me desinteresso.
   - O coração agindo sozinho funciona mais ou menos assim. Não está errado, desde que você não minta. Por favor, não minta mais pra mim.
   - Você acha que é possível explicar porque se ama alguém.
   - Acho necessário. O amor entre um homem e uma mulher precisa de admiração, e você tem que saber o que admira no outro. A paixão pode até ser indecifrável, o amor não.
   -Vamos tentar mais uma vez? Já que temos tudo esclarecido agora.
   - Tentar de novo porque?
   - Eu não sei.
   -Resposta errada.
    Ela disse isso sem nenhum rancor. 
    Virou-se e foi até a cozinha se servir de um copo de água.
   Ouviu o barulho da água fluida descendo da garrafa para o copo seguido do som seco da porta batendo.
   Olhou ao redor. Teriam que separar as coisas. O apartamento montado a apenas três meses seria partido em dois.
    Ela não sofreu com a ideia. Não ficaria bem de uma hora pra outra. Estava triste, desiludida, cansada.
     Mas acima de tudo, sentia-se inteira.






   

terça-feira, 24 de março de 2015

Panças espasmódicas


    Estava eu a caminhar languidamente pela calçada do Leblon, observando os transeuntes a minha volta, hábito que sempre exercitei.
    Três senhores de abdômen deveras avantajado, sentados num banco de madeira alguns metros a minha frente, falavam alto. 
    Cada um com uma lata de cerveja na mão. 
   Bermudas de marcas caras que não combinavam com as camisetas úmidas de suor. Chinelos nos pés. Três figurinos típicos de três machos acalorados de classe média alta.
    Assumiam os três, a mesma postura despencada, caída para trás. Os joelhos bem afastados, para dar espaço a masculinidade vultosa que mal devia caber dentro das calças, tocavam o joelho do coleguinha ao lado, que por sua vez também necessitava dar espaço a sua respectiva corpulência.
     Riam alto. Falavam alto. Gesticulavam. Não tentavam esconder o assunto interessantíssimo sobre o qual falavam.
     Mesmo porque, macho que é macho fala alto.

     - A teúda e mateúda do Marcão? Hahaha! Ele paga tudo pra ela!
     - Lógico! Uma mulher daquelas só iria com o Marcão por dinheiro!
     - Se me pagasse tudo eu também ia! Dizem que ele paga o aluguel, a faculdade, supermercado.
     - Mulher é tudo vagabunda.

      O hahaha grupal foi acompanhado de panças espasmódicas e algumas gotas de cerveja caídas nas camisetas chiques!

     - Tsc. Sei lá. Se me pagassem tudo eu também ia.
      Repetiu o mais jovem do trio.

     Pausa na confabulação.
     Eu acabara de passar do grupo.  Não me virei. Apenas imaginei a coreografia gestual dos três levando a latinha a boca e bebendo um gole de cerveja.

     - Tu ia comigo se eu te pagasse?

     Não pude ouvir a resposta, seguia meu caminho sem mudar o passo.

domingo, 22 de março de 2015

Escrevinhadora clandestina...


     Sou uma escrivinhadora clandestina.
     Escrevo de um refúgio interno.
     De onde posso assumir meus medos e orgulhos,
     porque lá, na folha desabitada,
      não são meus, esses vis sentimentos.
     Clandestinamente,
     espiono meus personagens.
     E através deles comemoro, choro, desespero, muitas vezes apaixonada.
     Escrevo clandestina.
     Roubo horas dos deveres,
     dos afazeres.
     Roubo horas da vida adestrada.
     E permito que a alegria inútil,
     de imaginar-me escritora, 
     se transforme em histórias caligrafadas.
     Escrevo clandestina.
     As palavras brotam de uma toca
     obscura da minha'alma, docemente aclarada.
     Serena finalmente,
     ela descansa e aquieta.

     Até surgir a próxima urgente necessidade
     de pegar a caneta e escrevinhar, de novo, e de novo...
     Sigo capturada.
   

   
   

sexta-feira, 20 de março de 2015

Divisão e paixão



     A cidade, no interior bem ao sul do Brasil, era dividida em três. Ninguém comentava, mas todo mundo sabia. Havia os lugares frequentados pelos alemães, os frequentados pelos italianos e os lugares, provavelmente mais animados, frequentados pelos negros. Ninguém questionava isso, pelo menos não naquela cidadezinha de pessoas sensatas que acabavam de passar por uma segunda grande guerra. 
    Mas o fato é que os alemães e italianos se detestavam mais até do que detestavam aos negros, isso era inegável. Havia além de tudo uma dessemelhança religiosa: católicos e protestantes, e os orixás no meio do atrito. Muitas famílias italianas falavam sua língua natal, e o mesmo acontecia com os alemães. As músicas e os hábitos alimentares eram diferentes. Nas casas dos italianos mesa farta, muita comida, pronta para receber quem mais aparecesse, conversas em voz alta. Nas casas alemãs comida certa, sem desperdícios, simplicidade, conversas comedidas.
    A diferença não era apenas nutricional, incontestavelmente. Alemães chamavam os italianos de esbanjadores exagerados, e esses chamavam aqueles de contidos e chatos.

     As três partes viviam em perfeita harmonia, desde que não se misturassem.

   Um dia aconteceu algo que desestabilizou suavemente aquele equilíbrio de tolerância tão bem consolidada: um alemão calvinista de olhos verdes se apaixonou perdidamente por uma linda italianinha católica.
       'Mas porque uma italiana, você só pode estar doido!! Com tantas moças alemãs de boa família disponíveis!' Diziam os amigos indignados. 'Isso é inaceitável, sempre foi desse jeito e não será agora que irá mudar'. Eram as palavras dos familiares.

    O fato é que cerca de trinta e cinco anos depois, ao pé do meu berço de recém nascida, minha avó italiana cantava para mim em alemão.

terça-feira, 17 de março de 2015

Os sonhos e o tempo

   Respirou fundo e abriu os olhos. Girou de lado e sentou-se na cama. Calçou as pantufas e caminhou até o banheiro. Parou em frente ao espelho e ficou olhando a imagem.
    Cabelos desgrenhados.
   Ela viu a passagem do tempo nas marcas do seu rosto, sem botox, sem laser, sem nenhuma esticadela, nenhum ácido. O tempo implacável, sem subterfúgios, sem maquiagem.
     A ruga entre os olhos era a mais exasperante. Uma marca indelével entre as sobrancelhas que lhe conferiam uma rabugice que não era sua. Aquela ruga não lhe pertencia. As outras, ao redor dos olhos eram rugas de riso e de choro, marcas de guerra, contavam sua história. Mas aquela entre os olhos nada mais era do que a marca do travesseiro que ela apoiava em cima da cabeça, deitada de lado, apertando contra o ouvido na hora de dormir para diminuir os ruídos. Essa posição amassava seu rosto como um buldogue. O problema é que ultimamente ela acordava amassada e não desamassava. A falta de colágeno é algo exasperante. Parou de dormir com o travesseiro em cima da cabeça, mas aquela ruga sobreviveu. Implacável. Herança de todos aqueles anos de sono com a cara enfiada entre os travesseiros. Ela lhe lembrava de todos os anos que passara dormindo, um terço de sua vida.
   Esticou o pescoço aproximando o rosto do espelho e puxou as sobrancelhas para fora. Quando soltou a ruga reapareceu.
    Afastou a cara do espelho. Não era velha, 40 anos. Mas percebeu que quando ficava séria, pensativa, tinha um ar de enfado. A musculatura já não era tão firme, escorregava levemente pelos ossos. Sua cara, indolente, virava um pintura impressionista, derretida. Dessas que quando você olha muito de perto tem uma impressão e quando olha de longe tem outra. 
    O tempo. Impresso. Sem negociação.
     Escovou os dentes, caminhou até a a cozinha e preparou um café. Recebeu uma mensagem de sua filha, e uma de seu marido. A primeira vinha seguida de uma flor, a segunda de um coração. O cheiro de café invadiu a casa. Colocou uma música para tocar. Sua mãe ligou. Uma amiga convidou para almoçar no dia seguinte. Colocou água nas plantas
     Com a xícara de café na mão, ela apoiou os cotovelos no parapeito da varanda e olhou para o céu. Estava com saudades das suas irmãs. Hoje tentaria falar com elas, cada uma num canto do planeta.
    Lembrou do rosto que vira no espelho. O tempo urge nas suas bochechas, nas partes de seu corpo antes preenchidas agora murchas, e nas partes antes delgadas agora abauladas. O tempo urge nas articulações, no sangue.
     Então ela concluiu que alguns sonhos não podiam mais esperar. E sorriu tomando um longo e quente gole de café.
   

     

terça-feira, 10 de março de 2015

Amor ao primeiro visto

'Esse ano minha última filha solteira se casa!'
'Mas ela não tem nem namorado! Como vai arrumar marido tão rápido?'
'Esse ano ela casa!'

     Foram apresentados numa festa e se encontraram algumas vezes em casas de amigos, bares, festinhas. Ele morava no Brasil havia quatro anos, queria ficar de vez, mas estava com dificuldades para renovar seu visto. Um dia, numa mesa de bar, ele num sentimentalismo ébrio desabafava com os amigos.
'Drroga! Eu não querro voltar a morrar naquele país frrio! Querro ficar aqui!' 
'E se a gente se casar?'
     Disse ela num impulso etílico aventuresco. 
'Eu posso tentar conseguir a cidadania alemã, e você ganha o seu visto.'
     Ele se comoveu com a proposta. Abraçou o amigo que estava ao lado.
'Vocês brrasileiros são tão incrriveis! Eu amo vocês!'
     E lascou um beijo meio babado na bochecha do amigo que faz uma careta.
'Me larga seu alemão maluco!'
     Os outros conversavam berrando outros assuntos na mesa que deveria ter umas dez pessoas.
'Mas com você eu querria casar de verdade!'
    Silêncio.
'Você pode repetir?'
    Ninguém mais falava na mesa.
'Com você eu querro casar de verdade'
     Ela sentiu as bochechas se aquecerem com todos os olhos voltados em sua direção aguardando uma resposta.
'Como assim? A gente nem namorou! Isso não vai dar certo desse jeito.' 
     Pausa. Ele não se pronunciou. Limitou-se a olhar para ela com olhos pidões.
     Os amigos nem tentaram fingir que não estavam interessados no desfecho dos acontecimentos. 
'Vamos fazer assim: a gente faz esse casamento no papel, você renova o seu visto. Depois me convida pra um cinema, daí a gente vai se vendo, quem sabe namora, e seguimos o ritmo normal de um relacionamento'.
      Ela respondeu tentando manter um tom sensato. Pegou a cerveja e tomou um gole para selar o acordo. Ele balançou a cabeça afirmativamente, sorriu e tomou o resto da sua cerveja de um gole só.
    Uma semana depois houve uma festa, e todas as etapas combinadas foram sumariamente ignoradas.
   
      Casaram-se como sua mãe havia visto nos astros, em dezembro daquele ano.
      Acabaram decidindo morar na Alemanha e hoje tem um filho de cinco anos.
 



sábado, 7 de março de 2015

Ansiedade

   
    Ela entrou no restaurante, e foi ao buffet se servir. Pesou o prato e se sentou em uma mesa encostada à parede, próxima à janela. Abriu o celular e passeou pelo facebook sem muito interesse. Colocou os fones e começou a ouvir  Billie Holiday enquanto se preparava para a primeira garfada. Uma série de movimentos robóticos repetidos diariamente em seu horário de almoço. Ela escolhia esse restaurante pois sabia que não encontraria nenhum colega de trabalho.
     Mastigando uma alface meio sem gosto olhou pela janela e viu um rapaz passando na calçada. Alto, ombros largos, capacete de moto na mão, calça social e camisa branca. Usava óculos de aros grossos.
    'Óculos e roupa social indicam um cara inteligente, bem sucedido. Ombros largos, barriga nivelada, moto, certamente um esportista. Deve ler muito, provavelmente sabe cozinhar. Indubitavelmente solteiro. Gosta de filmes cult, aros grossos indicam isso: clássicos em preto e branco. A camisa branca indica uma pessoa não muito afeita a riscos, ele gosta de se sentir seguro.'
     O rapaz entrou no restaurante e, como todos os clientes, foi ao buffet se servir. Depois de pesar o prato caminhou para uma mesa e sentou-se de frente para ela.
     'Salada e carne, ele cuida da saúde. Deve correr três vezes por semana, ao ar livre certamente.  No final faz meia hora de alongamento ao sol. Cinto preto combinando com o sapato, ele é vaidoso. Adora ir ao shopping no sábado à tarde, especialmente em época de liquidação.'
     Ela mastigou um suculento pedaço de sua carne, muito vagarosamente, distraída que estava observando-o colocar o capacete sobre a cadeira que ficaria vazia. A camisa era suficientemente justa para mostrar o grande dorsal se contraindo enquanto ele se curvava com o capacete em uma das mãos. Ela sentiu o coração acelerar e respirou fundo engolindo o alimento.
      Ele tirou o celular do bolso e colocou-o em cima da mesa.
      Ela olhou disfarçadamente pela janela observando o dia  nublado lá fora.
     'Ele não deve morar aqui pela região, ou não precisaria vir de moto. Deve morar num pequeno apartamento muito bem decorado. Com uma linda cozinha e uma enorme cama de casal. Mas ele não leva mulheres para lá com muita frequência. Da janela uma linda vista, por trás das cortinas bege.'
        Ele se sentou sorrindo para ela.
     Ela não saberia dizer se sorriu de volta. Teve sim, um pequeno sobressalto, arrumou um fio de cabelo inexistente na testa e olhou pela janela.
       'Ele sonha em encontrar uma mulher para ter dois filhos e morar num sítio na serra.'  
     Então ele encheu o garfo de comida e levou a boca. Olhando para o celular  começou a mastigar, de boca aberta. 
     'Boca aberta? Como assim?'
    Em meio aquele movimento descoordenado, ela podia ver a dieta saudável sendo triturada e o amor da sua vida lentamente moído em meio a um bolo repulsivo.
   Então ela olhou em volta e reparou que pelo menos mais duas pessoas mastigavam daquela forma. Subitamente o mundo ficou em câmera lenta, ela só podia estar num universo paralelo. Então uma senhora que acabara seu prato limpou alguma reentrância de um dente com o mindinho e lambeu, seja lá o que havia naquele mindinho. Ela sentiu  gotas de suor brotando de sua testa e o batimento cardíaco acelerando.
     'O que é isso? Eu estava na matrix e agora tomei a pílula vermelha da realidade?'
    Ela suspirou e se levantou. Ao passar pelo rapaz em direção ao caixa sentiu um suave perfume.
    'Perfume barato de mau gosto.'
    Abriu a bolsa, pegou uma pílula branca da felicidade que descansaria reconfortantemente embaixo da língua.
   
    





quarta-feira, 4 de março de 2015

Memória


    Ela saía todos os dias no mesmo horário, caminhava relativamente rápido. Se orgulhava de ter feito exercícios a vida inteira. O que seria mesmo a vida inteira? Bem, era muito tempo. Existe uma época em que a passagem tempo é percebida pela elevação da estatura, pelo crescimento dos cabelos e das unhas, pelo sol nascendo e se pondo. E existe uma época posterior à essa em que o tempo é medido pela quantidade de fios de cabelos que caem, pelas novas rugas que surgem, e pelos diferentes formatos da lua em noites insones.
     Esse segundo período não foi em nada pior do que o primeiro, ela não podia mais andar de bicicleta é verdade. Mas tinha tempo para escrever, ouvir música, cozinhar. Aprendeu inglês, finalmente. O novo idioma foi sendo assimilado a medida que sua pele sucumbia ao peso da gravidade. Mas isso também parece ter sido a muito tempo atrás. 
    Bem, o fato é que ela saía sempre no mesmo horário, para fazer três ou quatro coisas. Mas ultimamente, quando chegava na banca de revistas esquecia onde estava a ir. Sentava-se no banco de cimento e calmamente aguardava a memória lhe resgatar. Observava as pessoas passando tão apressadas.
    Se recusava a levar uma lista de afazeres consigo. 'Coisa de velha, eu só tenho 89 anos!'. Respondia para moça bonita que morava com ela. 
      O dono da banca lhe disse algo e ela sorriu, o vendedor de doces lhe deu uma cocada e ela aceitou. Será que pagou? Não saberia dizer. Houve uma outra pessoa que a  cumprimentou, quem era?  
    O banco, onde ela se sentava ficava bem em frente a uma locadora de filmes, coisa do século passado, ninguém mais aluga filmes. E subitamente ela se lembrou: saíra para alugar um filme. Levantou-se e entrou. 'Mas qual?'. Caminhou entre as prateleiras distraidamente.
     Depois de alguns minutos avistou  Bonequinha de Luxo. 'Boa opção, já vi esse a muitos anos, mas seria muito bom revê-lo', pensou. Passou no caixa e levou o filme para casa. 
    Quando entrou em casa  a moça bonita lhe deu um beijo. 'Mas que moça estranha! Ela me lembra alguém'.
     Colocou o filme no aparelho que tinha um nome engraçado.
     A moça bonita lhe trouxe pipoca e limonada. 

   E pela quinta vez naquela semana, sentada em frente a enorme TV ela chorou vendo Audrey cantar Moon River.

     Diziam que era dublado, mas ela nunca acreditou.

segunda-feira, 2 de março de 2015

Eu não caio nessa de que foi tudo em vão...

     
  
    Resolvi falar de mim hoje. Estou te avisando logo no início a fim de te dar a chance de desistir dessa leitura. Falarei da minha entediante vida, está decidido e essa é sua chance de abandonar-me, mas só dessa vez...
     Ok, essa será uma crônica selfie, acredite você nela ou não. Talvez ela só reflita meu ego e meu total auto-desconhecimento, mas tentarei ser sincera, prometo.
     Começo me perguntando: o que é que eu sei de mim? Eu mal reconheço minha voz gravada. Ela é ridícula e esganiçada. Será que alguém mais sente isso quando ouve a própria voz? Como alguém aguenta fazer aula comigo? 
     O fato é que aguentam, desde os 16 anos nunca deixei de dar aula (24 anos cacarejando nos ouvidos dos cidadãos), e nunca deixou de haver pessoas querendo gastar seu tempo livre e seu dinheiro para passar algumas horas por semana ouvindo minha voz esganiçada. E eu amo. Sempre me senti honrada. Mas sinceramente não sei como elas aguentam. E o pior, eu já dei onze aulas em um único dia e minha voz nunca, nunca me falhou. Garganta esganiçada do demo.
     Mas eu sou um pouco mais do que apensa uma voz, pelo menos torço por isso. Estudei muito, sim, e ainda o faço com bastante frequência. Mas além disso tento abrir os meus olhos para o outro: o aluno, ou o grupo que está a minha frente. Compreende-lo, alcança-lo. Essa é minha verdadeira tarefa, e é nela que eu acredito. Tocar o outro de alguma maneira.
     Nunca pensei em realizar grandes feitos, do ponto de vista do senso comum. Mas sempre imaginei que quando um aluno faz uma boa aula e vai embora um pouco mais feliz, se sentindo melhor, mais forte, mais flexível, ele trata melhor os filhos, o marido ou esposa, o chefe ou os empregados. É como uma pedra jogada na água. E as ondas de atitudes positivas vão se espalhando até o infinito. Até, quem sabe, chegar em alguém que possa realmente mudar o mundo. 
    É assim que eu me vejo. No trabalho e em cada pequeno ato insignificante..
    Essa faceta minha se alterna com uma indiferente e rabugenta, que de vez em quando se tranca numa caverna cheia de livros e chocolate,  e precisa muito ficar sozinha. E com uma terceira impetuosa e que eventualmente quer mudar o  mundo, mas essa é indolente, ela não dura. Eu brigo, chuto, estapeio e me canso. 
     Então  volto a jogar pedrinhas na água, por alguma razão, tenho a sensação de que elas são mais eficientes e  me fazem sentir melhor. Jogo essas pedrinhas com o máximo de competência, simpatia e pontualidade.
    Quando eu penso em desistir,  apenas sigo em frente.
     Eu não caio nessa de que foi tudo em vão...  
     

domingo, 1 de março de 2015

Romantismo sem maquiagem


     O táxi parou no sinal vermelho. Já sabia que era um sinal daqueles muito demorados.
     Suspirei cansada e mal-humorada, imaginando como ficaria molhada ao sair do táxi na forte chuva cheia de malas. Tocava algo no rádio como 'danada vem que vem', uma música com uma batida óbvia e exasperante que só piorava ainda mais a situação.
      Olhei para o lado. Um casal numa vespa estava encharcado. Meu primeiro pensamento foi 'coitados'. A roupa dos dois colada ao corpo ensopado. Ela  tinha longos cabelos negros que iam até a cintura, pesados com a água da chuva. Estava na frente e fazia uma torção com o tronco tentando olhar para trás, dizendo alguma coisa e sorrindo. O rosto molhado. Ele sorriu de volta.
     Dois sorrisos no meio daquele aguaceiro, ao som das buzinas, tendo o engarrafamento como testemunha.
     Ele esticou o pescoço num movimento improvável tentando beija-la na boca. Não pude ver o beijo atrás dos capacetes, não sei se as bocas alcançaram seu objetivo. Devem ter esticado os lábios formando bicos para alcançar um ao outro, atrapalhados com a posição e impedidos pelos indesejados mas obrigatórios capacetes, se batendo.
     As cabeças voltaram aos lugares de origem: em cima dos pescoços. Os sorrisos ainda maiores, como a chuva que engrossava e escorria pelo vidro do táxi.
    O sinal abriu.
    A vespa andou e logo sumiu. 
    Subitamente eu estava surda para a música.
    E quando me dei conta, também sorria...