terça-feira, 17 de março de 2015

Os sonhos e o tempo

   Respirou fundo e abriu os olhos. Girou de lado e sentou-se na cama. Calçou as pantufas e caminhou até o banheiro. Parou em frente ao espelho e ficou olhando a imagem.
    Cabelos desgrenhados.
   Ela viu a passagem do tempo nas marcas do seu rosto, sem botox, sem laser, sem nenhuma esticadela, nenhum ácido. O tempo implacável, sem subterfúgios, sem maquiagem.
     A ruga entre os olhos era a mais exasperante. Uma marca indelével entre as sobrancelhas que lhe conferiam uma rabugice que não era sua. Aquela ruga não lhe pertencia. As outras, ao redor dos olhos eram rugas de riso e de choro, marcas de guerra, contavam sua história. Mas aquela entre os olhos nada mais era do que a marca do travesseiro que ela apoiava em cima da cabeça, deitada de lado, apertando contra o ouvido na hora de dormir para diminuir os ruídos. Essa posição amassava seu rosto como um buldogue. O problema é que ultimamente ela acordava amassada e não desamassava. A falta de colágeno é algo exasperante. Parou de dormir com o travesseiro em cima da cabeça, mas aquela ruga sobreviveu. Implacável. Herança de todos aqueles anos de sono com a cara enfiada entre os travesseiros. Ela lhe lembrava de todos os anos que passara dormindo, um terço de sua vida.
   Esticou o pescoço aproximando o rosto do espelho e puxou as sobrancelhas para fora. Quando soltou a ruga reapareceu.
    Afastou a cara do espelho. Não era velha, 40 anos. Mas percebeu que quando ficava séria, pensativa, tinha um ar de enfado. A musculatura já não era tão firme, escorregava levemente pelos ossos. Sua cara, indolente, virava um pintura impressionista, derretida. Dessas que quando você olha muito de perto tem uma impressão e quando olha de longe tem outra. 
    O tempo. Impresso. Sem negociação.
     Escovou os dentes, caminhou até a a cozinha e preparou um café. Recebeu uma mensagem de sua filha, e uma de seu marido. A primeira vinha seguida de uma flor, a segunda de um coração. O cheiro de café invadiu a casa. Colocou uma música para tocar. Sua mãe ligou. Uma amiga convidou para almoçar no dia seguinte. Colocou água nas plantas
     Com a xícara de café na mão, ela apoiou os cotovelos no parapeito da varanda e olhou para o céu. Estava com saudades das suas irmãs. Hoje tentaria falar com elas, cada uma num canto do planeta.
    Lembrou do rosto que vira no espelho. O tempo urge nas suas bochechas, nas partes de seu corpo antes preenchidas agora murchas, e nas partes antes delgadas agora abauladas. O tempo urge nas articulações, no sangue.
     Então ela concluiu que alguns sonhos não podiam mais esperar. E sorriu tomando um longo e quente gole de café.
   

     

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