segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Herança.


   
 Arisco-me hoje a buscar uma trilha em direção ao passado.
    Um olhar para trás.
    Sem melancolia.
    Assim como os físicos, que amam a natureza, buscam incansavelmente a origem de tudo.
    Hoje olho para trás em busca dos meus antes de mim.
    E tudo que deles existe nos meus olhos, nos meus feitos e desfeitos, no meu coração.
    Peguei na caixinha de memórias as cartas.
    A caligrafia incerta do meu avô e da minha avó.
   Seguro o frágil papel com toda delicadeza para que  não se desmanche entre os meus dedos.
    Não escrevo hoje para contar sua história. Mas para honrar sua memória e agradecer sua existência.
     Herança.
     Do meu avô disciplina, rigor, retidão.
     Da minha avó alegria, cafuné, polenta com frango ensopado.
     E as cartas.
     Nessas recebo amor, elas transbordam amor. E eu posso tocar, e cheirar.
     Trinta anos depois de escritas eu posso tocar e cheirar.
     E elas transbordam.
   




   
   

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

mini auto-biografia

 
     Algumas vezes sinto-me impelida a escrever um poema, e eles são em geral felizes. Pelo menos desde que me tornei adulta. Na adolescência eu era muito mais melancólica. Sentia-me desencaixada, desengonçada, desorientada. Vivia eternamente apaixonada e eternamente rejeitada.
    Adolescência é assim creio eu, uma época de muitas dúvidas e muito sono. Passei vários anos tentando habitar meu corpo e entender que espaço ele deveria ocupar em meio aos demais. Meu corpo era fluido, esparramado pelo espaço, disforme. A maior parte do tempo eu sentia um desconforto por ser eu, e essa sensação só passava, em parte, quando eu dançava. E eu dançava horas e horas por dia.
     Eu só encarnei quando dei à luz. Isso aconteceu quando eu tinha 21 anos. A partir de então me entendi com meu corpo, e comecei a me entender comigo.
    Acredito que aquando compreendemos nosso exato tamanho (físico e intelectual), sem humildade nem arrogância, é a partir desse momento que podemos viver nosso real potencial.  Essa construção deveria acontecer na adolescência, mas nem sempre é assim. Muitas vezes passamos a vida toda tentando entender nosso papel. Algumas vezes temos vislumbres de nós mesmos e subitamente nos perdemos novamente.
  Nosso desenvolvimento ao longo da vida não é linear e isso é um tanto frustrante. Nosso desenvolvimento emocional não é linear, nossas qualidades físicas não evoluem constantemente numa direção. Somos seres num processo constante, que muitas vezes patina de lado, no piso escorregadio da insegurança, dos antigos hábitos, do auto boicote.
    Hoje comecei querendo escrever um poema, mas caí numa mini auto-biografia poética.
  Quando criança e adolescente, as horas vazias me açoitavam. Então eu botava uma música e dançava, pulava no sofá da sala, rolava pelo chão como numa cena de Godard. Fiz aulas de dança por anos e terei que afirmar de uma vez por todas, eu era uma bailarina péssima. Mas isso não me fez parar. E não fez a menor diferença na alegria que eu sentia ao dançar e que sinto até hoje dando aula de dança. Pilates, alongamento, caminhando ou pedalando.
    Enquanto meu objetivo era ser a Pina Bausch eu patinei de lado.
    Hoje eu só quero ser eu, inteira. E isso é coisa pra caramba, e dá um trabalhão.

    Não consegui escrever o poema. Mas não estou frustrada por isso...