domingo, 29 de maio de 2016

A coisificação da mulher, pelos homens e pelas mulheres



    Quando entrou na sala de reuniões lembrou que naquela hora sua filha estaria fazendo uma prova importante. Sentou em seu lugar e enquanto seu chefe, fazia uma introdução ao assunto que ela iria falar mandou uma mensagem desejando boa sorte. Quando então ele passou a palavra para ela, levantou-se calmamente. Vestia saia e camisa, azul marinho e branco, cabelos presos, brincos  que eram minúsculos pontos brilhantes. Além dela o recinto tinha apenas homens, mas ela estava acostumada.
     Fez sua apresentação com precisão cirúrgica e sentou-se. Seu chefe encerraria a reunião, mesmo sem ter nada a acrescentar. Ela saiu junto com o grupo, depois que foram dispensados pelo macho alfa e no aglomerado da porta um deles sussurrou ao seu ouvido: 'gostosa'. Uma colega que passava ouviu e fez uma careta para ela.
   Não houve reação. Ela sequer olhou para saber qual dos machos pronunciara essa palavra. Foi para sua sala e continuou trabalhando.
    A mesma colega passou na sala dela, parou na porta e disse: 'se você se vestisse de maneira mais sóbria evitaria constrangimentos.'
    Quando chegou em casa mais tarde ligou a TV e abriu uma garrafa de vinho. Passava um concurso de dança, e a letra da música era algo como 'novinha vem que vem'. Novinha? 
    Mandou uma mensagem para a filha para saber como tinha sido a prova.
    Deu uma olhada nos farelos em cima da mesa deixados pelo marido, que sempre saía depois dela para o trabalho. Limpou. Bebeu um gole de vinho. Leu a mensagem da filha: fui bem na prova, obrigada! Já estou em casa. Hoje foi tudo bem na universidade e no trabalho. Te amo!
   Mudou o canal da TV, notícias. Uma gravação telefônica, um ex presidente falando sobre uma amiga: 'se ela abrisse a porta e visse um monte de homem da polícia federal acharia que é um presente dos céus.'
   O marido chegou, serviu-se de vinho.
   - O que temos para o jantar?
   Uma segunda notícia sobre a primeira dama quarenta e dois anos mais nova que o marido, exaltando as qualidades da moça, que nunca teve um emprego, nunca fez trabalho voluntário, e tinha três babás para ajudar a cuidar do único filho.
   Na primeira propaganda, uma moça segurava um produto de limpeza e sorria depois de lavar roupas. Ela mudou de canal mais uma vez e assistiu alguns minutos um programa de beleza para mulheres, detalhando as vantagens de se fazer duas massagens estéticas por semana.

    Ela suspirou e olhou para o marido.
    - Tudo bem com você?
    - Hoje tá difícil!
    - Dia ruim no trabalho?
    - Às vezes as coisas parecem mais duras do que normalmente são. Parece que todas as coisas erradas saltam na sua cara, coisas que normalmente eu consigo ignorar para seguir em frente. Entende? Apesar de não ter acontecido nada de diferente de todos os dias.
    -Mais ou menos. Vou preparar alguma coisa para comer, conversamos um pouco mais se você quiser.
   

     Ela deitou e dormiu como sempre fazia. Não sofria de insônia.
     Levantou cedo e se vestiu para o trabalho, cabelo preso, brincos pequenos, camisa de manga comprida, calça social, maquiagem sóbria. Afinal, se alguma coisa der errado não podem botar a culpa na minha roupa.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

raízes e asas

 

Parte 1 - Clara 

   Um dia sua filha cresceu. É assim mesmo com os filhos, eles crescem, e isso é muito saudável. Não é?
    Clara sempre disse que nós criamos os filhos para o mundo. Discurso mais sem pé nem cabeça, ela pensou quando sua filha saiu de casa. Nós criamos os filhos porque os amamos, só isso. E quando eles vão para o mundo é um 'deusnosacuda'.
     Sua filha Lia sempre foi uma excelente aluna e passou nas duas universidades para as quais fez prova. Um pública e uma particular. Clara quebrou a cabeça vários dias tentando decidir. Pesava as greves de um lado contra o preço muito alto de outro. Pediu conselhos a diversos amigos, sobre a qualidade de cada uma, pesquisou daqui e de lá. 
     Certo dia escutou sem querer a filha falando ao telefone:
     - Não Jô minhas aulas começam dia 12, eu já tô vendo as matérias e conversando com os professores.
     Clara percebeu que seu bebê não precisava mais dela para as decisões difíceis. Andou até seu quarto como que desnorteada. Para que eu vou servir? Não tem mais fralda, comida. Ela não precisa mais de mim nem pra ir pra escola...universidade! Eu vou ser exatamente o que na vida dela? Ela sequer perguntou oque eu achava.
     Pensou muito sobre isso, tentou encontrar uma resposta, Construiu uma imagem em sua mente. Pensou que um filho é como uma árvore, e que os pais são suas raízes. Uma árvore só cresce forte, seus galhos só alcançam longe se ela tive raízes grossas e profundas. Seu papel agora era se fortalecer.
    Mas despedir-se de um filho é como despedir-se de si. Ver um filho seguir seu caminho é como ver a si mesma caminhando pelas ruas em carne viva.
     Eu vou conseguir e ela também, afinal, educar é dar raízes a quem almeja asas.
     Clara repetia frases de efeito para se convencer. Tocou sua vida.

Parte 2 - Lia

     Morava com a amiga Luiza havia dois meses. Elas estavam organizando as compras de mercado, a arrumação da casa, contas. A universidade demandava tempo e somada às tarefas domésticas resultou numa vida um tanto caótica.
     Lia acordou mais cedo e sentou-se em sua escrivaninha para fazer uma lista de afazeres antes mesmo de tomar café.
     - Mercado. Tenho que fazer uma lista, será que temos produtos de limpeza suficiente para o mês?
     - Ligar para o eletricista. Não sei onde está o número, tenho que fazer uma lista de telefones úteis.
     - Arrumar roupas. 
     Olhou ao redor. Roupa no chão, em cima da cadeira, em cima da tela do computador. Pegou o telefone e discou.


Parte 3 - Clara e Lia

     - Mãe! Você pode vir pra cá? Eu tô surtando. Eu preciso muito de você!
     Clara sorriu mas não deixou transparecer na voz.
     - Claro. Tô indo praí. 
     - Obrigada, te amo!

    
      






sexta-feira, 6 de maio de 2016

quarenta e dois


Minha cara está envelhecendo antes de mim.
Estou certa de que me dediquei,
a místicas peregrinações e saunas sagradas,
lutei batalhas épicas contra inimigos invencíveis,
imaginados distantes,
descobertos intrincados entre os neurônios e artérias cardíacas.
Pratiquei e pratiquei, o que quer que houvesse para ser praticado
disciplina e método.
Minha cara está envelhecendo antes de mim,
Os anos estão tatuados indelevelmente nas costas das minhas mãos.
E no fundo eu sei,
que o que importou,
importa
é deixar o amor transbordar por entre as pedras do percurso,
 curar o resfriado e respirar melhor,
 e deixar que a alegria dê certo.
Suavemente, deixar que ela pouse no nosso telhado e lá faça um ninho.
Descomplicada e colorida, a alegria tranquila como uma tarde de maio numa praia carioca.