quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Memória


     Quando Giuseppe Bonugli deixou o continente em direção ao desconhecido ele deixou mortos e vivos. Deixou coisas mergulhadas na tristeza e na alegria, regressadas da sua própria ausência. Deu o primeiro passo para dentro do navio sentindo coexistir em seu coração alívio e saudade.
    O Giuseppe que deixou uma Itália devastada pela guerra não foi o mesmo que chegou ao Brasil. Não poderia ser, após o impacto de um oceano entre si e sua terra natal.
    Naquele tempo, o oceano Atlântico era muito maior do que é hoje, sua travessia levava meses, custava o dinheiro economizado em uma vida. Atravessa-lo era deixar para trás o que ficava.
    Mas certamente Giuseppe trouxe consigo a Itália. 
   E já  no porto tornou-se José Antônio Bonugli. Nessa nova terra fez oito filhos e viveu até os sessenta e poucos anos, tendo falecido de carcinoma gástrico como consta no atestado de óbito.
   Eu nunca soube muito dele, se era religioso, alegre, agitado, sorumbático, pessimista. Minha avó falava, mas eu não tinha maturidade para ouvir. Lembro-me da minha mãe repetir que seu avô atravessava o rio a nado com ela nas costas, e eu pensava que ele devia ser muito forte. Afinal, ele atravessou o Atlântico. Nadar até a outra margem do rio deve ser moleza, ainda mais sabendo que se vai voltar, mesmo que seja pela ponte. E era uma ponte fácil de atravessar a pé.
   Ele atravessou um oceano sem volta. Os que avançam de frente para o mar, e nele enterram seu passado como uma faca que se enterra no peito, esses vivem de pouco pão e carecem de muito coração.
   Hoje eu queria muito lembrar de tudo que a minha vó contava sobre o meu bisavô e sobre a minha bisavó. Queria lembrar de cada palavra, de cada história. Hoje anseio honrar a memória desses desbravadores de oceanos, 
     Giuseppe queria uma terra para ter filhos para colocar seu nome. Tinha um desejo atávico de dignidade. Era um homem grande e forte...  É interessante como damos carne e osso às nossas memórias, através da vida que vivemos e não daquilo que herdamos. Para mim ele era grande e forte.
    Ao longo da minha vida, dos meus desgovernos, da minha lucidez e estupidez, dei vida nova ao vovô Giuseppe em mim. Se ele imaginasse que 120 anos depois de seu nascimento sua bisneta estaria escrevendo sobre ele e publicando numa coisa chamada internet ficaria alegre ou chocado?
     Em busca da cidadania italiana, tenho em mãos certidões que contam uma grande parte dessa história que eu tinha deixado escorrer pelas ladeiras da vida. Mas a carne e o osso do gigante que atravessava o rio com a neta nas costas permanece.
 



Sonho



  Hoje durante o sono eu passeava por uma cidade. As ruas eram limpas e bem cuidadas.
   Eu me perdi andando pelas ruas perfeitas de um mundo irreal, limpo, elegante, justo.
   Não sei se foi antes ou depois do amanhecer que eu caminhei por essa cidade onde não havia corruptos. Um mundo onde todos os doentes são atendidos. Onde crianças vão à escola. E aviões não caem por falta de combustível.
   Hoje durante o sono  me perdi atravessando uma ponte. Nela não havia mendigos. Num banco um casal de cabelos alvos conversava. Uma garça pousou na murada e eu reencontrei o caminho.
   Andei e andei passando de um país para o outro, sem superiores a me pedirem um documento. Simplesmente ia andando, um pé depois do outro, sem culpa, sem fome, sem peso. Pude deixar meu corpo andarilho flutuar, minha mente transgênera se expandir, meu coração cansado repousar.
   Nesse mundo não havia pedestres nas ciclovias, nem buzinas de carro, nem ciclistas nas calçadas.
   Era um mundo simples, onde cada um espera sua vez na fila.
  Hoje durante o sono eu caminhei por um mundo onde meninas não são drogadas e violadas. Onde homens não tem vontade de fazer isso.
   Durante o sono eu respirei um ar sem poluição. Respirei o ar de um mundo onde um ser racista, machista, e homofóbico não é o líder da maior potência econômica.
   Era maio, e eu caminhava por um mundo irreal, onde não há tortura, fome, guerra. Um mundo simples, feito de pessoas simples, que não matam por dinheiro, não roubam por poder, não traem por gana.

  E então eu abri meus olhos e acordei para o alarido desconexo dos mendigos, dos assassinos, dos corruptos, dos famintos, dos espertos, dos preguiçosos. Abri os olhos para o país da falsa alegria coletiva desvairada que acontece principalmente aos domingos. Acordei para o noticiário histérico.

  Estiquei minhas pernas. Vesti minha roupa de gladiadora e segui sem nenhuma melancolia em direção ao mundo real.



domingo, 13 de novembro de 2016

Irmãs


   Hoje apetecia-me deveras sentar na varanda e tomar um café quentinho com as minhas irmãs.
   No meu passado, Téte, a caçula era o meu bebê, minha protegida. E Juju, um ano e pouco mais nova que eu, era minha amiga, minha protegida. Ninguém mexia com elas se eu estivesse por perto, irmã mais velha e a mais alta da escola. Mais conhecida como 'varapau'.
    No passado, quando chegava em casa, minhas irmãs eram um obstáculo na conquista da atenção dos meus pais. Juju de vez em quando levava uns tapas. Bom jeito de chamar atenção. Mas ninguém mais tocava nela, só eu.
   Na Téte eu não tinha coragem de bater, ela tinha uma alma de passarinho e eu medo de desfazê-la.
   Téte passarinho. Juju alma flor. E eu alma corpo.
   Três criaturas tão distintas amadureceram em direções diferentes.
   Juju é pão de queijo na fazenda.
   Téte é garçom empilhando as cadeiras às quatro da manhã.
   Eu, caminhada de uma hora e quinze minutos.
   Tão diferentes e ainda assim, irmãs.
   Demorei uns bons trinta anos para me encantar com as dessemelhanças entre nós. E se as improváveis diferenças se espicharam ao longo de toda a vida, significa que meus pais souberam ver, de alguma forma, essas três almas. E cada uma se tornou o que é...
   Vivemos fisicamente muito distantes umas das outras, um oceano nos separa. E eu sonho com o dia em que seremos vizinhas de bairro. Um dia desses os continentes se aproximam, como há milhões de anos se afastaram. E então no aniversário de uma ou de outra, sentaremos na varanda para tomar um café e comer um bolo de cenoura com cobertura de chocolate.
 
 

 

domingo, 23 de outubro de 2016

verão


  Num dia de céu azul e calor grosso
  Eu vi o suor brotando na sua testa, e escorrendo pelo canto do rosto
  Num dia de verão carioca eu te vi

   A imprevista certeza
   Já nos conhecíamos a cem anos, mais foi nesse dia que eu te vi
 
   A ruga na tua testa mirando o computador
   O calor ficou mais intenso, subiu pelo meu estômago e queimou a minha garganta

   'Com quem será que ele conversa sentado aqui na minha frente?'

   A imprevista certeza

   Num dia de mosquitos elétricos eu disse que te amava
   Não tenho explicação para isso
   Mas é assim: amo-te

   Você elevou os olhos do computador
   A ruga se desfez

   - Eu também te amo.

   Num dia de calor gordo e viscoso quem teria coragem de se declarar?
   Num mundo de não envolvimento,
   Quem teria coragem?

   No dia seguinte, havia cinco folhas a mais na sucupira
   Estávamos, eu e você
   Contribuindo para o reflorestamento da cidade

    (abri os olhos, senti o cheiro de chuva
    te ouvi sussurrar ao pé do meu ouvido,
    voltei a dormir enquanto a cidade despertava)

 





sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Perfeição


   Eu me encontrei na sordidez de um mundo
   Onde é preciso ser corrupto, agiota, devoto ou prostituta.
   
   Nas espumas das praias distantes fui economista, física, médica
   Mas me deparei com um mundo de sordidez
   Onde é preciso engalfinhar-se seriamente
   E eu não quis...

   Não pude
 
    Nesse mundo mesmo me encontrei
    Do avesso me desfiz
    E do lado de dentro encontrei criatura
 
    Não fui forte para vencer todos os labirintos
    Escolhi os mais importantes e me refiz
    Longe do visgo do gozo de nata. Do puxa saquismo ressequido.

   Perdi tesouros, eu sei
   Perdi tesouros adormecidos em mim
   Não fui forte para muitas tempestades
   
    Eu me encontrei na sordidez de um mundo
    Onde é preciso engalfinhar-se
    Não fui forte para muitas lutas
   
    Escolhi a luta pela paixão
    Aquela que habita o improvável
    E sua trágica e jubilosa
    Perfeição
   
   

 

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Herança.


   
 Arisco-me hoje a buscar uma trilha em direção ao passado.
    Um olhar para trás.
    Sem melancolia.
    Assim como os físicos, que amam a natureza, buscam incansavelmente a origem de tudo.
    Hoje olho para trás em busca dos meus antes de mim.
    E tudo que deles existe nos meus olhos, nos meus feitos e desfeitos, no meu coração.
    Peguei na caixinha de memórias as cartas.
    A caligrafia incerta do meu avô e da minha avó.
   Seguro o frágil papel com toda delicadeza para que  não se desmanche entre os meus dedos.
    Não escrevo hoje para contar sua história. Mas para honrar sua memória e agradecer sua existência.
     Herança.
     Do meu avô disciplina, rigor, retidão.
     Da minha avó alegria, cafuné, polenta com frango ensopado.
     E as cartas.
     Nessas recebo amor, elas transbordam amor. E eu posso tocar, e cheirar.
     Trinta anos depois de escritas eu posso tocar e cheirar.
     E elas transbordam.
   




   
   

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

mini auto-biografia

 
     Algumas vezes sinto-me impelida a escrever um poema, e eles são em geral felizes. Pelo menos desde que me tornei adulta. Na adolescência eu era muito mais melancólica. Sentia-me desencaixada, desengonçada, desorientada. Vivia eternamente apaixonada e eternamente rejeitada.
    Adolescência é assim creio eu, uma época de muitas dúvidas e muito sono. Passei vários anos tentando habitar meu corpo e entender que espaço ele deveria ocupar em meio aos demais. Meu corpo era fluido, esparramado pelo espaço, disforme. A maior parte do tempo eu sentia um desconforto por ser eu, e essa sensação só passava, em parte, quando eu dançava. E eu dançava horas e horas por dia.
     Eu só encarnei quando dei à luz. Isso aconteceu quando eu tinha 21 anos. A partir de então me entendi com meu corpo, e comecei a me entender comigo.
    Acredito que aquando compreendemos nosso exato tamanho (físico e intelectual), sem humildade nem arrogância, é a partir desse momento que podemos viver nosso real potencial.  Essa construção deveria acontecer na adolescência, mas nem sempre é assim. Muitas vezes passamos a vida toda tentando entender nosso papel. Algumas vezes temos vislumbres de nós mesmos e subitamente nos perdemos novamente.
  Nosso desenvolvimento ao longo da vida não é linear e isso é um tanto frustrante. Nosso desenvolvimento emocional não é linear, nossas qualidades físicas não evoluem constantemente numa direção. Somos seres num processo constante, que muitas vezes patina de lado, no piso escorregadio da insegurança, dos antigos hábitos, do auto boicote.
    Hoje comecei querendo escrever um poema, mas caí numa mini auto-biografia poética.
  Quando criança e adolescente, as horas vazias me açoitavam. Então eu botava uma música e dançava, pulava no sofá da sala, rolava pelo chão como numa cena de Godard. Fiz aulas de dança por anos e terei que afirmar de uma vez por todas, eu era uma bailarina péssima. Mas isso não me fez parar. E não fez a menor diferença na alegria que eu sentia ao dançar e que sinto até hoje dando aula de dança. Pilates, alongamento, caminhando ou pedalando.
    Enquanto meu objetivo era ser a Pina Bausch eu patinei de lado.
    Hoje eu só quero ser eu, inteira. E isso é coisa pra caramba, e dá um trabalhão.

    Não consegui escrever o poema. Mas não estou frustrada por isso...
 

quinta-feira, 28 de julho de 2016

primeiro amor



   Aos 9 anos ele andava de um lado para o outro segurando um pequeno papel com as duas mãos sentindo borboletas no estômago.
    Alguns dias antes tomara uma decisão importantíssima: escreveu um poema para Isabella. Estava ali, em suas mãos, seu futuro estava selado.
   
    ISABELLA,
VOCÊ É LINDA QUE NEM O PÔR DO SOL,
O REFLEXO DO ESPELHO NO MEU CORAÇÃO, EU SEI QUE É VOCÊ.
                             
VOCÊ GOSTA DE MIM?

   - Será que eu entrego pai?
   - Não sei filho (ai! tomara que essa menina não dê um fora nele, que vontade de dizer: 'entrega nada filho, fica quieto e evita sofrimento')! Só você pode decidir isso.

    Duas semanas depois decidiu entregar...

    - Ela adorou!
    Contou ao pai certo dia ao chegar da escola.

    Haja coração para amadurecer! Haja coração para ser pai... E esse é só o começo.
 


domingo, 29 de maio de 2016

A coisificação da mulher, pelos homens e pelas mulheres



    Quando entrou na sala de reuniões lembrou que naquela hora sua filha estaria fazendo uma prova importante. Sentou em seu lugar e enquanto seu chefe, fazia uma introdução ao assunto que ela iria falar mandou uma mensagem desejando boa sorte. Quando então ele passou a palavra para ela, levantou-se calmamente. Vestia saia e camisa, azul marinho e branco, cabelos presos, brincos  que eram minúsculos pontos brilhantes. Além dela o recinto tinha apenas homens, mas ela estava acostumada.
     Fez sua apresentação com precisão cirúrgica e sentou-se. Seu chefe encerraria a reunião, mesmo sem ter nada a acrescentar. Ela saiu junto com o grupo, depois que foram dispensados pelo macho alfa e no aglomerado da porta um deles sussurrou ao seu ouvido: 'gostosa'. Uma colega que passava ouviu e fez uma careta para ela.
   Não houve reação. Ela sequer olhou para saber qual dos machos pronunciara essa palavra. Foi para sua sala e continuou trabalhando.
    A mesma colega passou na sala dela, parou na porta e disse: 'se você se vestisse de maneira mais sóbria evitaria constrangimentos.'
    Quando chegou em casa mais tarde ligou a TV e abriu uma garrafa de vinho. Passava um concurso de dança, e a letra da música era algo como 'novinha vem que vem'. Novinha? 
    Mandou uma mensagem para a filha para saber como tinha sido a prova.
    Deu uma olhada nos farelos em cima da mesa deixados pelo marido, que sempre saía depois dela para o trabalho. Limpou. Bebeu um gole de vinho. Leu a mensagem da filha: fui bem na prova, obrigada! Já estou em casa. Hoje foi tudo bem na universidade e no trabalho. Te amo!
   Mudou o canal da TV, notícias. Uma gravação telefônica, um ex presidente falando sobre uma amiga: 'se ela abrisse a porta e visse um monte de homem da polícia federal acharia que é um presente dos céus.'
   O marido chegou, serviu-se de vinho.
   - O que temos para o jantar?
   Uma segunda notícia sobre a primeira dama quarenta e dois anos mais nova que o marido, exaltando as qualidades da moça, que nunca teve um emprego, nunca fez trabalho voluntário, e tinha três babás para ajudar a cuidar do único filho.
   Na primeira propaganda, uma moça segurava um produto de limpeza e sorria depois de lavar roupas. Ela mudou de canal mais uma vez e assistiu alguns minutos um programa de beleza para mulheres, detalhando as vantagens de se fazer duas massagens estéticas por semana.

    Ela suspirou e olhou para o marido.
    - Tudo bem com você?
    - Hoje tá difícil!
    - Dia ruim no trabalho?
    - Às vezes as coisas parecem mais duras do que normalmente são. Parece que todas as coisas erradas saltam na sua cara, coisas que normalmente eu consigo ignorar para seguir em frente. Entende? Apesar de não ter acontecido nada de diferente de todos os dias.
    -Mais ou menos. Vou preparar alguma coisa para comer, conversamos um pouco mais se você quiser.
   

     Ela deitou e dormiu como sempre fazia. Não sofria de insônia.
     Levantou cedo e se vestiu para o trabalho, cabelo preso, brincos pequenos, camisa de manga comprida, calça social, maquiagem sóbria. Afinal, se alguma coisa der errado não podem botar a culpa na minha roupa.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

raízes e asas

 

Parte 1 - Clara 

   Um dia sua filha cresceu. É assim mesmo com os filhos, eles crescem, e isso é muito saudável. Não é?
    Clara sempre disse que nós criamos os filhos para o mundo. Discurso mais sem pé nem cabeça, ela pensou quando sua filha saiu de casa. Nós criamos os filhos porque os amamos, só isso. E quando eles vão para o mundo é um 'deusnosacuda'.
     Sua filha Lia sempre foi uma excelente aluna e passou nas duas universidades para as quais fez prova. Um pública e uma particular. Clara quebrou a cabeça vários dias tentando decidir. Pesava as greves de um lado contra o preço muito alto de outro. Pediu conselhos a diversos amigos, sobre a qualidade de cada uma, pesquisou daqui e de lá. 
     Certo dia escutou sem querer a filha falando ao telefone:
     - Não Jô minhas aulas começam dia 12, eu já tô vendo as matérias e conversando com os professores.
     Clara percebeu que seu bebê não precisava mais dela para as decisões difíceis. Andou até seu quarto como que desnorteada. Para que eu vou servir? Não tem mais fralda, comida. Ela não precisa mais de mim nem pra ir pra escola...universidade! Eu vou ser exatamente o que na vida dela? Ela sequer perguntou oque eu achava.
     Pensou muito sobre isso, tentou encontrar uma resposta, Construiu uma imagem em sua mente. Pensou que um filho é como uma árvore, e que os pais são suas raízes. Uma árvore só cresce forte, seus galhos só alcançam longe se ela tive raízes grossas e profundas. Seu papel agora era se fortalecer.
    Mas despedir-se de um filho é como despedir-se de si. Ver um filho seguir seu caminho é como ver a si mesma caminhando pelas ruas em carne viva.
     Eu vou conseguir e ela também, afinal, educar é dar raízes a quem almeja asas.
     Clara repetia frases de efeito para se convencer. Tocou sua vida.

Parte 2 - Lia

     Morava com a amiga Luiza havia dois meses. Elas estavam organizando as compras de mercado, a arrumação da casa, contas. A universidade demandava tempo e somada às tarefas domésticas resultou numa vida um tanto caótica.
     Lia acordou mais cedo e sentou-se em sua escrivaninha para fazer uma lista de afazeres antes mesmo de tomar café.
     - Mercado. Tenho que fazer uma lista, será que temos produtos de limpeza suficiente para o mês?
     - Ligar para o eletricista. Não sei onde está o número, tenho que fazer uma lista de telefones úteis.
     - Arrumar roupas. 
     Olhou ao redor. Roupa no chão, em cima da cadeira, em cima da tela do computador. Pegou o telefone e discou.


Parte 3 - Clara e Lia

     - Mãe! Você pode vir pra cá? Eu tô surtando. Eu preciso muito de você!
     Clara sorriu mas não deixou transparecer na voz.
     - Claro. Tô indo praí. 
     - Obrigada, te amo!

    
      






sexta-feira, 6 de maio de 2016

quarenta e dois


Minha cara está envelhecendo antes de mim.
Estou certa de que me dediquei,
a místicas peregrinações e saunas sagradas,
lutei batalhas épicas contra inimigos invencíveis,
imaginados distantes,
descobertos intrincados entre os neurônios e artérias cardíacas.
Pratiquei e pratiquei, o que quer que houvesse para ser praticado
disciplina e método.
Minha cara está envelhecendo antes de mim,
Os anos estão tatuados indelevelmente nas costas das minhas mãos.
E no fundo eu sei,
que o que importou,
importa
é deixar o amor transbordar por entre as pedras do percurso,
 curar o resfriado e respirar melhor,
 e deixar que a alegria dê certo.
Suavemente, deixar que ela pouse no nosso telhado e lá faça um ninho.
Descomplicada e colorida, a alegria tranquila como uma tarde de maio numa praia carioca.

domingo, 24 de abril de 2016

torta de amor


  Ela acordou decidida a passar o dia na cozinha. Faria um complicada torta em quatro etapas: a massa, o creme, a mousse, o merengue.
  Saiu de casa bem cedo com a lista de ingredientes no bolso para garantir que não esqueceria de nada.
    O porteiro cumprimentou-a e abriu a porta de vidro para ela. Ele ficou observando-a caminhar até a pracinha e sentar-se.
     Ela sentiu uma brisa fresca rara naquela época do ano. O céu estava muito azul. Crianças brincavam. Permaneceu lá um tempo, sorrindo com sua coluna ereta. Algumas crianças vinham conversar com ela, as babás vestidas de branco acenavam. Ela acenava de volta: 'moças simpáticas'.
                                                                      . . .

    Acordou um pouco mais tarde do que o normal. Apesar de ser um dia da semana comum ele tinha terminado todos os projetos urgentes na noite anterior e podia se permitir mais tempo na cama. Deu bom dia à esposa e foi preparar o café. Viu um livro de receitas aberto em cima da mesa da sala. Torta de limão.
     Depois do café com uma torrada, saiu.

                                                                        . . .

     Ela levantou-se do banco da praça com alguma dificuldade. O rapaz bonito da banca de jornais  gritou um bom dia, ela sorriu e acenou. Caminhou até o muro branco e no portão azul o porteiro já a esperava.  Ela subiu um lance de escadas e entrou no apartamento. Deixou a lista em cima da mesa junto ao livro de receitas, e foi se deitar. Sentia-se exausta. Adormeceu por algum tempo.
      Despertou ouvindo um piano sendo tocado na sala. Foi até lá e encontrou um rapaz tocando e uma moça sentada no sofá lendo. Ela pensou em peguntar quem eram eles e o que faziam ali mas viu a torta de limão em cima da mesa e se esqueceu do que queria dizer.
     Caminhou até a torta, enfiou um dedo no merengue e depois na boca. 'Hoje eu me saí muito bem, que torta bonita!' ela pensou com seus botões.

                                                                    . . .

  Meia hora antes na confeitaria da esquina:
   - Qual é torta de hoje 'seu' Antônio?
   - Torta de limão. Com merengue em cima por favor.
   - Mande meus cumprimentos para sua avó. Ela está bem?
   - Mandarei 'dona' Thereza. Ela está bem, obrigada!

                                                                     . . .

    No fim do dia o porteiro ganhou uma torta de limão que dividiu com a esposa e os seis filhos depois do jantar.
    Só haviam cortado duas fatias dela.
    Duas fatias grandes e doces...


quarta-feira, 13 de abril de 2016

eu...

   
     Eu já tive tanto medo de ser normal, que vivia num estado de constante inquietação em busca da verdade (seja lá que verdade é essa). Eu tinha medo de não ser eu, e procurava por mim, negando qualquer coisa que parecesse enquadrada, ou comum.
     Mas ao longo do tempo, essa busca foi ficando cansativa e quando finalmente eu parei de procurar me descobri um ser bastante estranho, curioso, inquieto e rabugento. Fiquei satisfeita. Parei de ter medo de ser normal e agora tento não parecer tão esquisita quanto eu realmente sou...

sábado, 9 de abril de 2016

Créditos de felicidade


     A gente precisa, na vida, acumular créditos de alegria, de coisas boas. Viver muitas coisas legais mesmo, divertidas, prazerosas, de forma que na hora do perrengue, (mas perrengue de verdade, não vale inventar motivo)  temos cartuchos de felicidade acumulados. Quando uma pessoa querida adoece, um amigo precisa de ajuda, um amor acaba, daí a gente tem de onde tirar, pra ajudar, pra superar, pra lutar...se não acumulamos alegrias, a vida vai se tornando amarga e quando a situação aperta de verdade, desistimos. 
     Até aí todo mundo entende e concorda. O problema é como acumular esses créditos, onde guarda-los afinal? Dando atenção para as pequenas coisas boas da vida, muito pequenas, quanto menores melhor.
     Você pode começar se alegrando com um êxito no trabalho, o nascimento de um bebê saudável, a recuperação de uma pessoa doente, o reencontro com um amigo antigo, fazer as pazes depois de uma briga, viajar. Mas vamos diminuir mais um pouco as pequenas alegrias: uma boa refeição, em boa companhia, um bom papo,uma caminhada na praia, no parque, por aí. Um dia de sol para pedalar. Um dia de chuva para beber um bom vinho. Um dia qualquer para ler um livro. Ir ao cinema. A filha que vem para o almoço. Planejar uma viagem. Um roupa nova. Um banho de cachoeira.
    Mas vamos diminuir um pouco mais as pequenas alegrias: ver fotos antigas, ouvir música no café da manhã de domingo. Descobrir um filé de salmão fresco em promoção. Um 'bom dia' na calçada. Tempo livre. Saber que se fez um trabalho bem feito. Um abraço apertado. O primeiro gole de uma cerveja bem gelada numa dia de muito calor. Segurar uma xícara de café quente com as duas mãos num dia muito frio. Um cheiro no cangote.
   Será que podemos diminuir ainda mais as pequenas alegrias? Sentir um prazer simples num suspiro profundo antes de abrir os olhos ao acordar. Espreguiçar-se com a satisfação de estar vivo. Experimentar uma alegria genuína ao sentir o gosto do café. Não engolir o café, não saltar da cama, não andar como um sonâmbulo. Desfrutar verdadeiramente o cheiro da chuva, a luz do outono, o som do mar. Nas pequenas alegrias nada é trivial. Para percebe-las, se faz necessário um corpo sensível e uma mente presente. Esses dois pormenores são a diferença radical entre uma vida desfrutada e uma vida perdida. Um corpo sensível, disponível, conectado e uma mente atenta. É o corpo que nos traz para o presente, pois a mente insiste em vagar entre o que já foi e o que será. O corpo por sua vez só existe nesse tempo, nesse lugar. Sem ele, a mente se perde na depressão de viver no passado ou numa ansiedade constante ao tentar prever o futuro.
   É somente no presente que acumulamos os créditos de felicidade, não é em nenhum outro lugar além desse onde você se encontra agora, exatamente agora. 

    
   







domingo, 3 de abril de 2016

espelho


    Aos vinte e um anos estava sentada na sala de casa com sua filha recém nascida no colo. Os minúsculos olhinhos se abriram. Cheirou o cabelinho, passou o nariz na pele macia da bochecha. 'Somos nós duas agora pequenina, eu vou dar conta, você vai ter que confiar em mim'. Ela confiou, nunca houve dúvidas entre as duas. 
    Desde pequena aquele bebê olhava para ela muito séria, como se já soubesse das coisas da vida. Olhava muito desconfiada para as pessoas que não conhecia. Não ria com bilu-bilu. Quase não dormia. Sua mãe nunca ouvira falar de um bebê de três meses que dorme às onze, acorda às seis e não cochila de tarde, nada. Aquela pequena criatura estava sempre ligada em tudo, com sua carinha séria desconfiada. No entanto, quando sua mãe dizia 'pula que eu te pego', ela pulava sem pestanejar.
    Cresceu muito rápido, rápido demais na opinião da mãe. 
     A confiança entre as duas só aumentou. Para elas não existe amor automático, precisa admiração, e uma tenta merecer a admiração da outra.
      Hoje ela tem a idade que a mãe tinha quando engravidou.
    Um dia, ao longo dessa história, alguém comentou com a filha: 'você não parece nada com a sua mãe'. Ela respondeu: 'talvez não por fora, mas por dentro eu sou praticamente um espelho dela'. 
    Espelho feito de amor, de admiração, em que não se sabe quem é reflexo, quem aprende com quem. 
      A filha não tem a mesma profissão da mãe, nem engravidou na mesma época, nem lida com os problemas da mesma forma. E ainda assim ali está o espelho, que só as duas vêem. O espelho sutil dos valores.

domingo, 27 de março de 2016

Fio da meada


     Antes de sair de casa ela pegou a chave sobre a estante e por um momento parou e mirou o porta retrato da família. Sua bisavó ao centro, seu avô e sua avó, sua mãe e sua tia, ela mesma com as duas irmãs e sua única prima. O lado alemão da família na imagem. Provavelmente quem batera a foto fora seu pai. Todos muito sérios, postura ereta. Um jardim verde ao fundo. Nenhum esboço de sorriso, um ar orgulhoso predomina nas faces concentradas.
     Pegou a chave e saiu para dar uma caminhada.
     Passando pelo jardim ela viu um aviso de não pise na grama. Jardim bonito, bem cuidado. Parou onde indicava a placa e admirou o lago e as vitórias régias. O brilho da água, é céu azul. Sentiu a pele quente, apesar de ser início de outono fazia  calor. Uma gota de suor escorreu pela coluna até tocar o cós do short verde.
    Não sabe quanto tempo permaneceu ali parada.
    Pensou na filha, no marido. Sentimentos bons. Sentiu saudade da sua mãe e de suas irmãs, distância dura. Lembrou dos sobrinhos que cresciam lá longe. Pensou em tudo que aprendiam, todos os dias.
    Uma garça pousou muito próximo dela. Perfeitamente branca, perfeitamente aerodinâmica. Linda!
    As árvores se moviam lentamente com uma leve brisa.
    Um grupo de  pessoas se aproximou, falavam alto e riam muito. Gargalhadas e gestos. Ruído. Pisaram na grama e foram até a beira da água.
    Ela deu um suspiro.
    Chegaram três crianças e imitaram os adultos. Vários sapatos, de vários tamanhos pisoteavam a grama verde, ao lado da placa que pedia para não pisar na grama.
    A garça se foi. Ela se virou e caminhou para longe, uma ponta de irritação a acompanhava agora em sua caminhada.
    'No Brasil alegria e diversão justificam falta de educação. Tanta coisa justifica tanta coisa que se perde o fio da meada. Basta um sorriso e um tapinha nas costas.'
     Ela sentiu uma saudade ainda maior da sua família.

 

   
   

   

terça-feira, 22 de março de 2016

Deserto...


     Viajando pelo deserto minha mente se esvaziou por várias horas... Estive ausente. Tirei uma folga dos questionamentos, do emaranhado, da auto critica, da auto piedade. Tirei uma folga de mim.
    Tirar uma folga de si vez ou outra é tarefa difícil, mas recompensadora. Alguns o fazem meditando, outros correndo ou nadando. É preciso ter esse tempo no dia a dia. Mas muitas vezes não dá tempo pra ter tempo. E seguimos observando nosso tempo escorrendo por entre os dedos como areia no deserto.
     Esvaziar-me olhando uma vastidão seca me trouxe uma sensação nova. Foi como esvaziar-me  de tudo que pesa e preencher-me daquilo que interessa.
     O mais difícil é saber o que interessa. No deserto não pensei sobre isso, apenas deixei acontecer. Agora percebo os espaços preenchidos de pessoas amadas, de dias ensolarados, de companheirismo, de generosidade, de risos, de crianças, de comidas bem temperadas, de trabalho bem feito, de agradecimentos do fundo do coração, de elogios sem segundas intenções.
       Passamos muito tempo desorganizados internamente dando um peso enorme a coisas que no fundo são secundárias: dinheiro, pessoas mesquinhas e mal-humoradas, trânsito, cara feia, mau atendimento. Uma coisa é ter pequenas irritações, normais no dia a dia, outra coisa e viver a vida em função dessas irritações, deixando que o modus operandi seja o da agressividade e da revolta.
      Viajando pelo deserto minha mente se esvaziou, e esse esvaziar abriu espaço para o novo e para o velho esquecido: o cheiro de terra molhada (que delícia!!), uma roupa limpa, uma cama quente. Voltei a preencher os espaço cheios da poeira do dia a dia com ar fresco, abri  minhas janelas internas e deixei sair o cheiro de mofo.
        Viajando pelo deserto, com um céu azul de doer de tão lindo, um vento entrecortante e o nariz cheio de poeira eu percebi o quanto mundo é vasto e eu pequena. E desse exato tamanho, nem maior nem menor, eu sou muito importante pra mim...


                                                       






terça-feira, 15 de março de 2016

Pergunta...

É o corpo que influencia a mente ou a mente que influencia o corpo? Perguntou Descartes.
E será que eles são dois? Não será essa a questão primordial?