quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Memória


     Quando Giuseppe Bonugli deixou o continente em direção ao desconhecido ele deixou mortos e vivos. Deixou coisas mergulhadas na tristeza e na alegria, regressadas da sua própria ausência. Deu o primeiro passo para dentro do navio sentindo coexistir em seu coração alívio e saudade.
    O Giuseppe que deixou uma Itália devastada pela guerra não foi o mesmo que chegou ao Brasil. Não poderia ser, após o impacto de um oceano entre si e sua terra natal.
    Naquele tempo, o oceano Atlântico era muito maior do que é hoje, sua travessia levava meses, custava o dinheiro economizado em uma vida. Atravessa-lo era deixar para trás o que ficava.
    Mas certamente Giuseppe trouxe consigo a Itália. 
   E já  no porto tornou-se José Antônio Bonugli. Nessa nova terra fez oito filhos e viveu até os sessenta e poucos anos, tendo falecido de carcinoma gástrico como consta no atestado de óbito.
   Eu nunca soube muito dele, se era religioso, alegre, agitado, sorumbático, pessimista. Minha avó falava, mas eu não tinha maturidade para ouvir. Lembro-me da minha mãe repetir que seu avô atravessava o rio a nado com ela nas costas, e eu pensava que ele devia ser muito forte. Afinal, ele atravessou o Atlântico. Nadar até a outra margem do rio deve ser moleza, ainda mais sabendo que se vai voltar, mesmo que seja pela ponte. E era uma ponte fácil de atravessar a pé.
   Ele atravessou um oceano sem volta. Os que avançam de frente para o mar, e nele enterram seu passado como uma faca que se enterra no peito, esses vivem de pouco pão e carecem de muito coração.
   Hoje eu queria muito lembrar de tudo que a minha vó contava sobre o meu bisavô e sobre a minha bisavó. Queria lembrar de cada palavra, de cada história. Hoje anseio honrar a memória desses desbravadores de oceanos, 
     Giuseppe queria uma terra para ter filhos para colocar seu nome. Tinha um desejo atávico de dignidade. Era um homem grande e forte...  É interessante como damos carne e osso às nossas memórias, através da vida que vivemos e não daquilo que herdamos. Para mim ele era grande e forte.
    Ao longo da minha vida, dos meus desgovernos, da minha lucidez e estupidez, dei vida nova ao vovô Giuseppe em mim. Se ele imaginasse que 120 anos depois de seu nascimento sua bisneta estaria escrevendo sobre ele e publicando numa coisa chamada internet ficaria alegre ou chocado?
     Em busca da cidadania italiana, tenho em mãos certidões que contam uma grande parte dessa história que eu tinha deixado escorrer pelas ladeiras da vida. Mas a carne e o osso do gigante que atravessava o rio com a neta nas costas permanece.
 



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