domingo, 30 de agosto de 2015

Instantâneo

   De dentro do café em Paris, peço uma taça de vinho. Escondida capto um momento privado. A mulher e seu segredo, eu e o meu...

TPM ou sinceridade?


   O politicamente correto anda me irritando deveras. Coisa mais chata.
   Vamos organizar: o que é correto é correto e fim. Necessário, virtuoso, civilizador.
   Já o politicamente correto é um saco. É o bom mocismo de botequim.
   O mau humor virou politicamente incorreto. Você tem que ser magra, competente, politicamente engajada, saudável, generosa e simpática! Faça-me o favor! Simpática é demais.
   A alegria virou uma obrigação.
   Descontar nos outros não resolve, eu sei, mas dá um certo alívio momentâneo e eu gostaria de ter o direito de sentir de forma mais espontânea os descaminhos da alma, sem culpa.
   Outro dia xinguei o cara que corria no meio da ciclovia, xinguei, fazer o que? É a vida! Ele estava errado. Será que vai resolver? Será que ele deixará de correr no meio da ciclovia? Provavelmente não. E daí? Xinguei porque quis, e xingaria de novo. Não sou perfeita, não quero ser. Não gosto nem de lipoaspiração, quanto mais do politicamente corretíssimo.
   Alguns dias fico, de verdade, de saco cheio.
   E para o seu governo, o cara que corria no meio da ciclovia era negro. E xinguei-o. Com minha melhor voz esganiçada de quando fico furiosa, xinguei-o de mau educado. Não me ocorreu nenhum xingamento racista, porque falta de educação não tem absolutamente nada a ver com a cor da pele. Aliás, a maioria da pessoas que correm na ciclovia são bem branquinhas. Apenas calhou de eu estar atacada nesse dia, e o dito rapaz, quando ouviu o 'plimplim' da buzina da minha bicicleta, disse em tom superior 'calma!'. Não suportei. Calma? Mas eu estaria calma, se pedalasse para o meu trabalho em uma ciclovia livre de corredores.
   E porque hoje, estou navegando pelos mares da rabujice, me ocorre que o Homo sapiens está deveras equivocado, os de todas as cores. E eu faço parte dessa espécie e ninguém me perguntou se eu não queria ser ET.
   Sou diariamente obrigada a ser humana e fazer parte desse mimimi coletivo e hipócrita. Ó!


domingo, 23 de agosto de 2015

Viver exige joelhos fortes


    Tania me procurou indicada  por uma amiga fisioterapeuta. Tinha operado o joelho fazia pouco mais de dois meses e havia recebido indicação médica de, após receber alta da fisioterapia, começar atividade física imediatamente. Tania nunca gostara de exercícios físicos, era uma intelectual convicta. Mas seu corpo mandou-lhe um sinal inequívoco: num movimento corriqueiro rompera-lhe um ligamento. A dor foi terrível. 
     Ela chegou no meu estúdio mancando de leve, meio encurvada para frente, carregando um peso invisível nos ombros. Não tinha força muscular. Notava-se uma frouxidão ligamentar que dava uma falsa impressão de ter articulações flexíveis, quando na verdade ela não tinha estabilidade nenhuma. Ao olhar para ela tinha-se a impressão de uma pessoa afundada.
     Como geralmente acontece nas aulas individuais Tania me falava de sua vida. Uma mulher na casa dos 40, traços harmoniosos, inteligente, mas solitária. Nunca tivera um  relacionamento por mais de um ano, sua auto estima era um tanto danificada. Ela parecia ter certeza de não ser desejável. Não compreendia e não gostava do seu corpo.
    Muitas vezes ela se irritava com exercícios mais  desafiadores. Não fazia aula em grupo porque tinha vergonha.
    Iniciamos fortalecendo o quadríceps com caneleiras, aumentando o número de repetições e a carga lentamente. Depois de quatro meses passamos a fazer agachamentos. Além disso fazíamos todo o trabalho de fortalecimento e alongamento geral. Sempre acreditei que o corpo funciona como uma unidade. Não se cura um joelho fortalecendo apenas a musculatura envolvida com o joelho, mas reorganizando o corpo como um todo, postura, estabilização, auto imagem. Relaxando e fortalecendo toda a máquina fisiológica que é o corpo humano. 
   Depois de cinco meses de aulas o joelho de Tânia estava ótimo. Ela já subia e descia escadas com facilidade e podia agachar para brincar com a sobrinha. Era uma aluna dedicada e atenta, nunca faltava às nossas sessões. Joelhos machucados de alunos  que não conseguem manter a frequência de treinamento podem demorar até um ano para se recuperar.  Esse não era o caso de Tania e ela já cogitava a hipótese de fazer aulas de grupo, parecia estar mais segura, mais presente em seu próprio corpo. Emagrecera um pouco, sua postura se tornou mais equilibrada, mais vertical. A cabeça, antes projetada para frente, numa tentativa desesperada de compreender o outro, estava agora no seu lugar de direito: no meio dos ombros. Essa nova postura, além de mais eficiente, menos dolorida, é muito mais elegante. 
   Certo dia, passados mais de seis meses de aula ela chegou com o joelho inchado e sentindo muita dor. Decepcionada eu perguntei:
    - O que houve? Como seu joelho piorou tanto?
    Ao que ela respondeu sorrindo:
     - Valeu a pena!

       A aula de grupo teve de ser adiada vários meses. Tania se casou um ano depois.



domingo, 16 de agosto de 2015

Poema pássaro...


   Hoje eu quis um poema.
   Acenei em sua direção chamando, vem!
   Ele me olhou desconfiado, poema pássaro.
   Vem! Pedi mais forte.
  Ele, ainda desconfiado, viu minha mão estendida;
  nela eu segurava meu coração apaixonado.
  Apaixonado e correspondido.
  Vem! Anseio um poema de amor correspondido:
  pássaro raro.
  Sem sofrimento, sem susto, sem mágoa.
  Vem!
  Hoje eu quis um poema de amor que subjuga o tempo,
  que degusta, adivinha, morde, afaga. Um amor que existe.
  Sintoniza, afina.

   O poema? Não sei se veio. Veio isso...

   O amor? Inunda.


segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Amor de Photoshop ou Felicidade de Internet


     Encontraram-se em frente ao parque. Depois de um beijo apaixonado e levemente constrangedor para os passantes ele pegou a sacola pesada da mão dela.
     - Mas você já tem a sua para carregar. Pode deixar essa comigo querido!
    - Eu posso perfeitamente carregar ambas, e nem mesmo vou precisar das duas mãos. Você precisa desfilar nesses lindos sapatos. São novos?
     Deram-se as mãos e iniciaram uma pequena caminhada até o gramado central, em frente ao casarão antigo.
     - Sim, comprei especialmente para hoje.
     - Você fica linda de salto alto meu amor! E esse vestido lhe caiu especialmente bem.
      O suor aparecia nas costas da elegante camisa branca que ele vestia. Deslocaram-se lentamente pelos caminhos acidentados e irregulares do parque, enquanto ela tentava não torcer o tornozelo.
     Quando chegaram ao ponto de encontro viram a fotógrafa acenando para eles alegremente e sorrindo. Flutuavam sobre a sua cabeça alguns balões vermelho cintilante em forma de coração. Ela fazia gestos eufóricos e tinha uma voz meio esganiçada. Havia sido muito bem indicada por amigos.
      O casal caminhou até ela.
      - Como estamos hoje? Prontos para registrar o amor de vocês?
     - Prontíssimos.
     Disse ela. Ele apenas sorriu.
     - Então vamos começar. Deixem suas bolsas ali naquele banco. Muito bem, muito bem! Por aqui. Você sobe nesse tronco de árvore, cuidado com os sapatos! Você se posiciona logo abaixo dela, segurem a mão um do outro. Isso, isso, muito bom. Você olha para o infinito, como uma santa. E você olha para ela. Tente uma expressão de adoração, devoção. Isso!!! Excelente!
    A fotógrafa ia falando enquanto ajeitava o tripé com a imensa máquina.
    Ela se desequilibrou e quase despencou.
     - Não foi nada, não foi nada. Tudo sob controle! Ela disse apoiando-se no ombro dele.
     - Está bem, mais cuidado com esses saltos mocinha. Agora os dois no meio do gramado, cada um com um balão de coração. Aqui, aqui está, um para cada um. Olhando nos olhos um do outro, por favor. Que casal apaixonado! Vocês são um exemplo de amor, de felicidade! Quero um olhar profundo! Quero ver a paixão que sentem um pelo outro. Isso! Clic! Clic! Clic!
     - Solte o cabelo agora. Linda! Sentem-se na fonte, por favor. Pode ser no colo dele. Sorrindo! Que maravilha!   Clic! Clic! Clic!
    - Um beijo apaixonado! Clic! Clic! Clic!
     - Ótimo, muito bom! Vamos trocar o figurino? Tem um banheiro lá na frente, vamos ter de caminhar alguns metros. Certo. Você coloca o vestido branco agora, e você trouxe o terno?
     - Trouxe.
     -Ótimo. Então pode vesti-lo. Vamos fazer as próximas fotos num outro cenário. Na beira do lago.
     A fotógrafa acendeu um cigarro enquanto aguardava o casal trocar de roupa. Mudou a lente da máquina. Fotografou algumas plantas. Retirou alguns objetos de sua enorme sacola e montou um piquenique na beira do lago. Uma toalha xadrez, uma cesta, uma garrafa de vinho.
     -Prontos? Muito bom. Ali, no gramado na beira do lago. Sentem-se, por favor. Vocês devem parecer confortáveis sentados no chão. Cada um com uma taça de vinho. Um brinde.
     Clic! Clic! Clic!
     - Se quiserem tomar um gole, o suco de uva está geladinho.
     Clic! Clic! Clic!
     - Agora um livro para cada um. Finjam que estão lendo enquanto desfrutam a maravilhosa companhia um do outro. Pode deitar a cabeça no colo dele. Vamos deixar as taças de vinho aparecendo. Muito bom!
     Clic! Clic!
     - Bem, acredito que já temos um bom material para trabalhar. Vou editar as fotos e envio  ainda essa semana para que vocês possam postar no dia dos namorados está bem?
     Enquanto falava ela já ia organizando seus objetos e enfiando várias coisas dentro da sacola.  
     - Está ótimo! Obrigada! Gostamos muito do seu trabalho.
     - A segunda parcela do pagamento que nós combinamos deverá ser paga hoje tudo bem?
     - Claro, sem problema.
     - Então está bem, mantemos contatos. Vocês foram ótimos. Tchau!
     - Tchau.
     Eles se olharam, sorriram e se beijaram mais uma vez. Aproveitaram para fazer selfie do beijo.
     - Você está realmente linda!
     - Você também. Acho que nunca vi você de terno antes. Fica muito elegante e sexy.
     Mais um beijo.
     - Tenho que ir.
      -Está bem querido.
     - O que você vai fazer hoje a noite?
     - Vou descansar, trabalhei muito essa semana. Estou realmente exausta.
     - Certo, vou tomar uma cerveja com alguns amigos.
     - Ótimo. Me manda uma foto do bar está bem?
     - Combinado.
     Despediram-se calorosamente.
    Antes de ir para casa ela trocou de roupa no mesmo banheiro. Vestiu um short e uma sandália baixa. Enfiou as outras roupas na sacola. De dentro do táxi deu um telefonema e mandou três e-mails. Em casa ela tomou banho e vestiu um pijama. Tirou vários selfies, deitada, vendo TV, preparando o jantar.
      Pouco depois ele já estava na mesa do bar conversando com os amigos.
     - Cara! Essa mulher não tem nada a ver comigo. Eu não sei o que eu vi nela, e agora não sei como terminar. Ela parece um polvo cheio de tentáculos se enroscando em mim, me pedindo coisas, me pressionando. Vocês precisam ver, ela é completamente louca por mim! Completamente fixada, não pensa em mais nada além de me agradar. Ela me sufoca.
     O celular vibra em cima da mesa e chega uma foto dela de pijama preparando o jantar. Ele mostra para os amigos, faz uma careta e todos riem. Ele responde ‘bom apetite meu amor’, com ar de pouco caso, solta o celular e continua falando.
     Meia hora depois ele recebe mais uma mensagem com a frase ‘quase dormindo, aproveita sua cerveja, te amo muito’. Ele responde com a frase ‘a galera te manda um beijo, também te amo!’ e uma foto dele com os amigos. Todos sorriem e dão ‘tchauzinho’.

      Nesse exato minuto ela saía de outro táxi. Em algum ponto da cidade. Vestindo seu figurino de balada, usando sua maquiagem mais caprichada, e seus sapatos novos de salto alto.