quarta-feira, 4 de março de 2015

Memória


    Ela saía todos os dias no mesmo horário, caminhava relativamente rápido. Se orgulhava de ter feito exercícios a vida inteira. O que seria mesmo a vida inteira? Bem, era muito tempo. Existe uma época em que a passagem tempo é percebida pela elevação da estatura, pelo crescimento dos cabelos e das unhas, pelo sol nascendo e se pondo. E existe uma época posterior à essa em que o tempo é medido pela quantidade de fios de cabelos que caem, pelas novas rugas que surgem, e pelos diferentes formatos da lua em noites insones.
     Esse segundo período não foi em nada pior do que o primeiro, ela não podia mais andar de bicicleta é verdade. Mas tinha tempo para escrever, ouvir música, cozinhar. Aprendeu inglês, finalmente. O novo idioma foi sendo assimilado a medida que sua pele sucumbia ao peso da gravidade. Mas isso também parece ter sido a muito tempo atrás. 
    Bem, o fato é que ela saía sempre no mesmo horário, para fazer três ou quatro coisas. Mas ultimamente, quando chegava na banca de revistas esquecia onde estava a ir. Sentava-se no banco de cimento e calmamente aguardava a memória lhe resgatar. Observava as pessoas passando tão apressadas.
    Se recusava a levar uma lista de afazeres consigo. 'Coisa de velha, eu só tenho 89 anos!'. Respondia para moça bonita que morava com ela. 
      O dono da banca lhe disse algo e ela sorriu, o vendedor de doces lhe deu uma cocada e ela aceitou. Será que pagou? Não saberia dizer. Houve uma outra pessoa que a  cumprimentou, quem era?  
    O banco, onde ela se sentava ficava bem em frente a uma locadora de filmes, coisa do século passado, ninguém mais aluga filmes. E subitamente ela se lembrou: saíra para alugar um filme. Levantou-se e entrou. 'Mas qual?'. Caminhou entre as prateleiras distraidamente.
     Depois de alguns minutos avistou  Bonequinha de Luxo. 'Boa opção, já vi esse a muitos anos, mas seria muito bom revê-lo', pensou. Passou no caixa e levou o filme para casa. 
    Quando entrou em casa  a moça bonita lhe deu um beijo. 'Mas que moça estranha! Ela me lembra alguém'.
     Colocou o filme no aparelho que tinha um nome engraçado.
     A moça bonita lhe trouxe pipoca e limonada. 

   E pela quinta vez naquela semana, sentada em frente a enorme TV ela chorou vendo Audrey cantar Moon River.

     Diziam que era dublado, mas ela nunca acreditou.

2 comentários:

  1. Já perdi a conta do número de vezes que li esse texto. Simplesmente maravilhoso.

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  2. Foi o primeiro que escrevi na vida e é ainda o meu preferido.

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