domingo, 29 de março de 2015

Uma colcha do tamanho do mundo


     Aos noventa e cinco anos o coração finalmente lhe falhou. Levaram-na ao médico, o filho e a nora, angustiados. Ela estava calma. Apesar da palpitação e da falta de ar sabia que não era sua hora.
     O médico lhes disse que o coração estava muito fraco  e que ela teria de três a quatro meses de vida.
     O casal no banco da frente do carro voltou para casa num silêncio doído. Ela olhava a paisagem lá fora e pensava como o dia estava bonito.
     Ao chegar em casa ela pegou seu crochê. 'Tenho que terminar essa colcha está bem?' Combinou com seu coração. É bem verdade que aquele crochê começou como um pequeno centro de mesa, mas no caminho de casa ela mudara de ideia. Seria uma colcha de casal das grandes.
     Nessa noite ela pegou um livro: Cem anos de Solidão. Nunca havia lido um nobel de literatura. Sempre preferiu livros simples, romances água com açúcar. Mas dessa vez decidiu que leria um livro sério.
     À medida que avançava na história sua colcha crescia. À medida que os nomes dos personagens se repetiam, sua colcha ganhava novas cores e desenhos. Os personagens rodavam em sua mente numa sucessão de 'Josés Arcádios', 'Aurelianos', 'Úrsulas' e 'Amarantas'. Ela já não sabia mais quem era filho ou neto de quem. O livro foi virando um mantra de gerações que se sucedem, nos eternos ciclos de vida, morte e renascimento.
    Algumas testemunhas contam que a colcha cresceu tanto que poderia cobrir uma quadra de esportes e tinha tantas cores que era impossível conta-las. Seu filho não desmentia nem afiançava tal informação.
     Um dia ela se deu por satisfeita. Olhou a sua volta e viu uma profusão de cores ao seu redor como uma piscina de sonhos. Decidiu que era grande o bastante. Deitou-se, abriu seu livro e leu as últimas dez páginas.
     Adormeceu enrolada em uma pequena parte de sua colcha que cobria quase todo chão do quarto, o livro apoiado no peito.
     Quando seu filho chegou em casa às sete horas da noite, ele chamou por ela. Uma vez, depois outra. Então ele soube.

    No dia seguinte ela faria noventa e nove anos...
   

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