sábado, 4 de abril de 2015

Pálida alienígena


    Eu cresci numa cidade muito pequena, menor do que a menor cidade que qualquer um tenha ido, exceto os habitantes daquela cidade. Uma cidade de pessoas brancas, bem brancas. Nada de pardos, mulatos.
    Só andei de elevador pela primeira vez aos oito anos, quando saí daquela cidade de prédios de no máximo dois andares. Foi só quando saí de lá que vi pela primeira vez um telefone. Meus contemporâneos falam de programas de TV de sua infância, eu não os assisti. Nossa minúscula televisão preto e branco não me interessava. Não havia vídeo game, nem computador, nem celular. Nunca tinha andado de escada rolante. Eu não sabia oque era um shopping ou uma brinquedoteca.
     Eu amava  o jardim, e pra além dele, todos os espaços, muros, árvores, pedras, riachos. A cidade era minúscula, mas o meu mundo era enorme, infinito.
    Por volta dos sete anos nos mudamos para a capital. Uma cidade começando onde meu pai teria um emprego melhor e eu e minhas irmãs melhores escolas. Isso de fato aconteceu. Eu tive que estudar muito para acompanhar a turma da minha idade e nos dois primeiros anos eu era a pior aluna da escola. 
    Nosso apartamento era pelo menos duas vezes maior do que a pequena casa,  no interior. Mas o mundo lá fora encolheu incrivelmente. Meu universo ficou restrito ao pilotis do bloco. Nas escadas eu podia me sentar e ficar um pouco sozinha. Eu aprendi a subir no teto do elevador, e ali ficava esperando alguém entrar e movimenta-lo. Acho que minha mãe nunca soube disso, até agora.
    Lá na pequena cidade eu tinha apenas um amigo, e sempre pareceu suficiente. Um bom amigo que corria comigo pelas poças de lama depois da chuva. Ele tinha cabelos cor de ouro e uma pele quase transparente. Mas aqui não, aqui a coisa era bem diferente. Todos tinham tantos amigos. Era difícil pra mim entender aquela dinâmica. Eu me vi atropelada. 
    Até então eu tinha tempo livre e espaço. Eu cuidava das minhas irmãs, montava brinquedos de madeira, criava girinos. Aqui não havia girinos, nem tempo. E era uma obrigação ter amigos, muitos amigos. E um dia, finalmente, fiz uma amiga muito boa que tinha muitos amigos. Ela era a mais popular e a mais engraçada. E isso teve que bastar para mim. Não foi possível me adequar, e ainda não é. Eu não sou o tipo amiga de todo mundo, azar meu.
    Essa minha amiga, que o é até hoje, é linda. Pele cor de chocolate. Cabelos bem crespos que ela nunca alisou, sempre fez os cortes mais legais, sempre usou roupas coloridas. Estudamos a vida toda, nos colégios públicos da cidade onde eu era a única loira de olhos azuis. E detestava isso. Me sentia diferente. Como se já não bastasse ser caipira, ainda por cima eu tinha que ser tão magra, tão alta, tão loira. E com conteúdo escolar defasado, olha que beleza?
   Lá pela quinta série me apaixonei pela primeira vez. Nunca contei isso para ninguém, nem para minha amiga. Ele tinha a pele de um escuro como céu mais escuro e o sorriso que parecia um sol a se abrir. Mas é claro que ele não se interessaria por mim, magrela e pálida. Por isso eu apenas escrevi algumas poesias de amor e ouvi música romântica no rádio. Foi tudo que eu fiz a respeito. 
    Um dia essa paixão adolescente  passou.
    E assim me fui, até o terminar o ensino médio, uma alienígena pálida.

   Hoje eu olho ao meu redor, e vejo tantas cotas para negros que meu inconsciente infantil não compreende. Claro, eu sei que historicamente o país, a humanidade deve muito a esse povo. Mas eu, que fui uma criança que me sentia discriminada por ser branca tenho nas minhas células uma memória oposta a que  me ensinaram nas aulas de história. 
     Meus maiores ídolos são negros, minha melhor amiga da vida é negra.
     Não compreendo o racismo. Mas é fato que ele aí está. Em algum lugar obscuro da nossa condição humana.  
     Cotas resolvem? Não sei. Sigo buscando as respostas.

     Esse texto era para contar um pouco da minha infância. Acho que me perdi. Essa sempre foi uma característica minha que hoje as palavras atenuam. Sempre foi tão fácil me perder. Mas no caso de um texto posso ir ao início e recomeçar num novo caminho. Hoje não. Hoje será assim, um texto desvio. Começa com infância, termina como uma homenagem. Uma homenagem à diferença. 

      Sejamos diferentes.
   Caipiras, brancos, negros, populares, tímidos, magros, gordos. Que possamos nos respeitar e admirar o que interessa, de verdade.




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