domingo, 5 de abril de 2015

água, peixe, estrela do mar, pedra, essência


      Depois de muito lutar com um câncer, finalmente, num final de tarde de inverno, ele desistiu. Não fazia frio nem chovia, mas foi o pior inverno dos últimos trinta e dois anos. 
     À medida que a doença avançava e os ossos sucumbiam um a um ele se encurvava um pouquinho. Mas nunca o suficiente para voltar o olhar para o chão. 
     Um dia arrumou um pedaço de pau que usava como bengala. Ele chamava de cajado e se dizia o Gandalf do Senhor do Anéis. 
      Foi emagrecendo rapidamente. Perdendo o apetite.
     O  oncologista,  que  nega até hoje que essa informação tenha saído da sua boca, disse que nesse estágio a melhor coisa seria um cigarro de maconha: melhora o apetite, diminui as dores e aumenta o sono. Minha mãe, que foi sua enfermeira, deu três telefonemas, e alguns amigos foram visita-los com gramíneas de folhas estranhas, orgânicas e cultivadas em vasos nas varandas dos bairros de classe média. Um médico, um advogado, um músico. Ele ria e dizia que virara maconheiro depois de velho. Ele, que sempre dissera que é ilegal e pronto, argumento único e inviolável. A  maconha fez com que ele voltasse a rir por mais algum tempo. E a comer. 
     Certo dia foi internado para exames, e seu corpo se recusou a reagir por mais tempo. O que deveria ser  uma noite virou cinco e na sexta noite, algumas horas após a minha chegada, seu corpo decidiu que bastava.
      No velório, que começou às nove da manhã e só acabou às cinco da tarde passaram mais de trezentas pessoas. Eu não conhecia a maioria. As paredes não foram suficientes, cobertas de coroas de  flores que vinham não sei de onde. As pessoas  passavam por mim e depois dos pêsames  se apresentavam: 'eu trabalhei com seu pai fui secretária dele, fui secretária da sala ao lado, era colega de sala, ascensorista, fui chefe do seu  pai, eu servia o cafezinho, sou o secretário do ministro'. Assim o dia foi passando, lento, numa sucessão de apertos de mãos e 'sinto muito' que se tornou um mantra um ritual de despedida.
      Eu passei o dia inteiro lá, ao lado do caixão. Só saí quando me mandaram embora. 
      Não me lembro se chorei. Me lembro que senti fome e vontade de ir ao banheiro, mas não fui.
      Então a capela fechou.
      A cremação seria no dia seguinte. Suas cinzas foram de carro até a praia onde ele passara tantas férias.
     Eu tinha trinta e dois anos quando meu pai faleceu, mas a vida de um pai não é contada em anos. A vida do herói está num mundo sem tempo. O resto é mal-entendido, e há tantos mal-entendidos numa vida humana.  
     Com meu pai não. Não havia nenhum. Ele era simples. Sem complicações. 
     Eu não acredito em espíritos, adoraria acreditar. Para mim meu pai virou água, peixe, estrela do mar, pedra. E  com a minha  saudade e a  memória dos ensinamentos dele faço o cimento da minha existência.

   Ainda bem que entre nós não houve mal-entendido. 
    No momento mais difícil da minha vida, com os olhos cheios de lágrimas ele me abraçou e me disse, 'não fica assim filha, tudo se resolve'. Ele era assim, e assim foi até o fim. Sem nunca trair sua essência. 

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