terça-feira, 12 de maio de 2015

Auto antropofagia esquizoide


     As mulheres da minha geração cresceram inseridas num dilema: nossas mães não queriam ser como nossas avós. Parece um dilema bobo, mas não é.
     Por gerações, mulheres se espelharam em outras mulheres mais velhas, havia um padrão a seguir, quisesse você ou não. Era um modelo fixo e seguro. 
     Subitamente uma geração disse 'não'. Não queremos ser obrigadas a seguir nenhum padrão. Então,  elas simplesmente negaram o padrão existente. Terei que me desculpar pela frase anterior que saiu de supetão, porque  não foi absolutamente  nada simples. Nossas mães tiveram que quebrar tudo e fazer diferente da geração anterior, de forma a abrir caminho para as próximas que viriam. Elas precisaram queimar roupas de baixo, cortar o cabelo, vestir calças. Cada ato desses, hoje vistos com certo desdém, era uma dura batalha.
    E foi com esse preceito que nós crescemos: o feminino é opressor. 
    Minha geração teve como exemplo mulheres que negaram o gênero, foi necessário.
  Como via minha mãe, e várias outras mulheres, lutando firmemente contra os padrões do ideal da mulher, me nasceram caninos afiados, e com eles eu mordi vorazmente o feminino em mim. Aos vinte e cinco anos eu nunca havia me maquiado, nunca havia feito as unhas, não usava saia nem vestido, nenhuma bijuteria. Não aceitava ajuda do sexo oposto para nada.

   (Demorei mais ou menos trinta e cinco anos para me parir mulher. Já tinha me parido mãe, profissional, esposa. Mas de quantos partos uma pessoa precisa? Vamos nos parindo ao longo vida várias vezes e nunca nos tornamos inteiros. Somos um eterno vir a ser, provavelmente nossa beleza se encontre aí. Não nossa: das mulheres. Mas nossa: da humanidade. Somos uma espécie que busca.)

     Um dia, por fim, me pari mulher. E foi um alívio.     
   Finalmente percebi que eu não precisava temer o batom, o salto alto, uma mão gentil a me conduzir para fora do veículo. Percebi que a minha força não seria diminuída por um homem forte.
    Eu temia a resignação, a frigidez, o lugar da vítima. Temia a infelicidade. De tanto medo de ser infeliz fui mastigando o feminino em mim saboreando o sangue que escorria pelo canto da minha boca. E junto com meu próprio sangue fui mastigando corações masculinos perdidos no emaranhado que era tentar compreender algo que nem eu compreendia. 
   Um dia, finalmente me pari mulher. A primeira expiração dessa nova pessoa trouxe uma libertação e finalmente eu deixei de gastar energia numa auto antropofagia esquizoide.    
    Isso aconteceu faz só cinco anos. Ainda sou uma mulher aprendendo a ser mulher.
    
     Hoje, aos quarenta e um anos, estou me parindo pessoa desaterrada. Sem remorso, preciso declarar: não sou gaúcha, não sou brasiliense, não sou carioca, não me sinto nem mesmo brasileira. Não me apego à cultura, os únicos padrões que me interessam são os da ética. Tenho um coração nômade, um corpo ajustável, uma mente metamórfica. Sou mãe, filha, irmã, mulher, homem, bicho, vento, vírus, cura. Meu corpo que viveu, que adormeceu e despertou, minha carne e meu sangue, meus ossos e minha alma esses tem as minhas marcas de guerra. Essas marcas foram paridas muitas vezes, e muitas vezes eu me dei as trevas e de novo a luz. Trevas e luz. Mas no fim, sempre, luz...

    Nunca perfeita, mas sempre em busca.

Nenhum comentário:

Postar um comentário