“A parte falsa, esquecida desde Descartes, é a
que nos diz que a mente não produz suas próprias sensações, e por isso, essas
se mantém exteriores a ela. Mas, por outro lado, delas a mente se apropria.
Vivendo-as. A unidade do ‘vivido’ e do ‘vivente’ já não é, com efeito,
justaposição espacial ou relação de conteúdo e continente: é uma inerência
mágica” Sartre
Ela acordou muito cedo. Antes mesmo de o
sol levantar-se para aquecer aquele lado da Terra. Estava escuro e frio. O
despertador tocou e ela suspirou profundamente. Dormira bem, mas não o
suficiente, como sempre.
Sentiu o colchão macio e a coberta pesada.
Suspirou mais uma vez. Esticou braços e pernas num espreguiçar felino. Contou
dez respirações de olhos fechados, e então os abriu.
Rolou de lado e escorregou as pernas para
fora da cama enquanto se sentava. Apoiou os pés vestidos por grossas meias no
chão, sentindo a textura do tapete de sisal. Levantou-se e caminhou até o
banheiro. Jogou água fria no rosto, escovou os dentes, trocou de roupa, fez
café.
Ela saiu do prédio junto com os primeiros
raios de sol. Olhou para o céu: seria um dia de sol. Adorava os dias de
inverno com sol.
Sorriu. Um sorriso largo, disponível.
Pegou a bicicleta e saiu rápida pela cidade
sonolenta. Poucos carros, calçadas quase desertas. Os primeiros pássaros
ensaiando os sons do dia. Ela adora sair para trabalhar de bicicleta.
Parou no primeiro sinal e esperou. Sentiu
o cheiro dos escapamentos. O apoio dos ísquios no banco da bicicleta: desconfortável.
Os primeiros raios de sol bateram na sua camiseta preta e aqueceram a pele por
baixo.
O sinal indicou que ela poderia avançar.
Contraiu os músculos e pôs a bicicleta em movimento. Pegou a ciclovia e aproveitou
para acelerar. Sentiu o coração batendo mais depressa, a respiração respondendo
à demanda do corpo em movimento. A música que tocava nos seus ouvidos:
‘Socorro não estou sentindo nada, nem medo, nem calor, nem fogo, não vai
dar mais pra chorar nem pra rir... já não sinto amor nem dor, já não sinto
nada...por favor uma emoção pequena, qualquer coisa...tem tantos sentimentos
deve ter algum que sirva...’
Respirou fundo. Sentiu o suor
escorrendo pelas costas.
Não tinha a menor ideia do que era não
sentir nada. Ela sentia tudo. Sentia sempre: o sol, o vento, a tristeza do
mendigo, a agressividade do motorista, a gentileza do bom dia desconhecido, os
cheiros da cidade, a sede na garganta. Sentia pena, raiva, amor. Não fugia de nenhum sentimento e de
nenhum sentido. Não fugia...
Freou sua bicicleta chegando ao seu destino.
Viu uma pedra no chão e abaixou-se para pega-la.
'Sim há muitas pedras em meu caminho, guardo todas pra construir um castelo.'
Jogou-a para cima, pegou de volta.
Caminhou em direção ao portão, da pedra não sei....
Jogou-a para cima, pegou de volta.
Caminhou em direção ao portão, da pedra não sei....
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