quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Moça antigravitacional II

     Uma noite inteira tentando era o suficiente, e ela desistiu de dormir. O sol começava a nascer. Vestiu uma coisa qualquer, apropriada para o momento fora do prumo, pegou sua bicicleta e saiu. Pedalou por algum tempo, sentindo a maresia e o ar frio da manhã. Não pensava. Sua cabeça era uma sala vazia, apenas com os ecos de sua vida.
      Parou numa padaria qualquer, tão apropriada quanto a roupa. Uma mesa vazia: sentou-se. ‘Bom dia’, disse ao senhor da mesa ao lado. Pediu um café e um pão na chapa. Olhou novamente para o senhor. Lembrava seu pai. Seu pai, que tinha o hábito de contar piadas e rir delas sozinho. Ela sempre admirara essa capacidade. Gostaria, também, de poder rir do próprio ridículo.
      O ridículo de ser deixada pelo namorado, três meses depois de irem morar juntos. ‘Não dá mais pra mim’, disse ele. ‘Oi? Não dá mais? Três meses? Nossa!’, pensou ela, rindo da própria situação.
     O senhor da mesa ao lado olhava pra ela com ar intrigado, mas ela não se importou e sorriu pra ele, pensando naquela última frase: ‘estou saindo com outra pessoa‘. Afinal rir era uma iguaria rara em tempos de lágrimas. Lembrou-se de seu pai mais uma vez, rindo da piada da freira: ‘Quem corre mais? A freira de saia levantada ou o tarado de calça abaixada?’ É, seu pai definitivamente sabia sobre sorrir.
     Um cachorro de rua aproximou-se e encostou no seu pé. Um branco, bem pequeno, de uma raça qualquer, ou nenhuma. Nunca gostara especialmente de cachorros, ou de crianças. É bem verdade que alguns conquistaram seu coração: seus sobrinhos e sua cadela da infância, Duquesa. Mas nunca considerou cachorros, ou crianças, como entidades intocáveis. Alguns são simplesmente insuportáveis. Aquele, no seu pé, era simpático.
      Afagou-lhe a cabeça e ele balançou o rabo. Ela se irritou. Não com o bicho, mas consigo mesma. Ela era assim: uma migalha de carinho e o amor era lindo.
     Tomou seu café. Levantou-se, pegou sua bicicleta. O senhor da mesa ao lado já havia ido embora. Voltou pra casa. O vento e a maresia tocavam sua pele e seus cabelos. Pensava no cachorrinho simpático e nas risadas do seu pai.
    Quando entrou em casa, viu as malas na porta.
     Ele estava de volta...
   ‘Que pena!’, suspirou.
    Ela não iria comprar um cachorro para preencher o vazio. Não, seu coração não era um qualquer.
    Ela se sentia mais leve assim: só. Quase antigravitacional

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