sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Moça antigravitacional

     Ele saiu mais cedo naquele dia. Queria ver as ruas mais vazias, antes de começar o burburinho de pessoas, carros, coisas...
    Saiu bem cedo e foi à padaria tomar um café com pão na chapa. Aquela mesma padaria de limpeza duvidosa que ele ia todos os dias. Andando pela calçada, pensou ‘porque abrem tantas farmácias nesse bairro? Todas as livrarias e restaurantes fecham e viram farmácias’. Esse pensamento o deprimiu, sentia-se velho e necessitado das farmácias. O bairro envelhecia com ele, os vizinhos envelheciam com ele.
     Costumava sentar-se no balcão, e observar  as pessoas, com seus cafés, seus sonhos , suas bolsas cheias de coisas importantes. ‘As mulheres então, o que elas tanto carregam naquelas bolsas enormes? Os homens costumavam sair com menos peso, mas ainda assim, andam pesado, carregando algo invisível sobre os ombros’, pensou.  Ele sentia aquele peso em seus próprios ombros. Aos 62 anos diziam que ele era jovem, mas ele se sentia pesado e velho, depois do câncer que levou sua companheira de trinta anos.
    Naquele dia a padaria estava um pouco mais vazia, ele resolveu se sentar numa mesa, mais confortável, geralmente ocupada em outros horários.  Viu uma moça chegando de bicicleta, uma bolsa pequena, quase não havia peso ali. Andava como uma gazela, magra e comprida, cabelos muito longos, uma calça excessivamente colorida, um dragão no ombro esquerdo, vários pequenos brincos na orelha, um brinco no nariz... ‘Muito estranho furar o nariz... Coisa mais indígena’, pensou ele.
     Ela sentou-se ao seu lado e sorriu pra ele. Sim, ela sorriu!  Mas por quê? Olhou em volta. O mundo continuava o mesmo, com suas bolsas cheias de sonhos e ombros pesados de perdas. Aquele sorriso preencheu um buraco, que a muito só crescia, e por onde corria o vento da solidão, quente e viscoso, como o sangue de uma ferida que nunca cicatriza.

       E a moça anti-gravitacional sorriu novamente e disse ‘bom dia!’ Depois de muitos meses, ele finalmente se sentiu leve...

Nenhum comentário:

Postar um comentário